29/03/12

A Liberdade é para todos

Mais do que críticas ou ultimatos, o Papa levou a Cuba uma mensagem de esperança no futuro

Seis dias e meia volta ao mundo depois, Bento XVI está de regresso ao Vaticano após um périplo mexi/cubano que vai ficar registado como um dos momentos mais importantes do pontificado iniciado em 2007.

Seria injusto delimitar esta viagem do Papa à América Latina e, em particular, a sua passagem por solo cubano, à dimensão sociopolítica; também seria ingénuo ignorar que todas as viagens de Bento XVI, líder religioso de maior projeção mundial, têm um peso político.

Depois do banho de multidão no México, muitos esperavam uma viagem mais “técnica” a Cuba, país menos católico e com uma repercussão internacional muito assinalável, como aliás se pôde comprovar pelo acompanhamento mediático dos últimos dias.

Consciente do desafio que se lhe apresentava na ilha dos Castro, o Papa fez questão de sublinhar, logo no voo inicial, que a Igreja não era um poder político ou um partido, mas uma autoridade moral.

Foi desde esse espaço religioso e ético que Bento XVI se dirigiu à população cubana: crentes ou não, exilados, presos, simples agricultores ou descendentes de escravos, todos tiveram espaço nas reflexões de um Papa que, ao contrário do regime comunista, deseja o fim do marxismo e o surgimento de uma sociedade revigorada por novas soluções.

Mais do que críticas ou ultimatos, o líder da Igreja Católica levou uma mensagem de esperança no futuro, numa ilha tantas vezes isolada, empobrecida por um embargo que o próprio fez questão de criticar, da mesma forma que alertou para a necessidade de liberdade religiosa e de plena participação dos católicos na vida da sociedade cubana.

No balanço desta viagem, uma nota para quem tem a missão de avaliar o que se passou nestes dias: as expectativas de quem vive fora de Cuba não coincidem, necessariamente, com os anseios da população, as “justas aspirações” a que o Papa se referiu por duas vezes.

Foi o próprio presidente da Conferência Episcopal local, por exemplo, a destacar o orgulho do nome "cubano" e a falar da desconfiança da população face a qualquer “ingerência estrangeira”. Fica claro que, para os responsáveis católicos, qualquer solução para a reconciliação nacional e a renovação do país devem partir de dentro e não de imposições unilaterais.

Cuba e o mundo precisam de mudanças, disse Bento XVI. Cuba e o mundo, porque a liberdade é para todos.

Octávio Carmo


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28/03/12

Um novo Papa

Coração no coração, Bento XVI e o povo mexicano escreveram uma das páginas mais bonitas do atual pontificado

Há sempre tempo para recomeços e, prestes a completar 85 anos, Bento XVI viveu no México uma experiência que vai fazer dele um novo Papa. Não que se espere uma mudança radical de atitude no contacto com as pessoas ou uma reformulação do seu pensamento, mas será inevitável que, no seu interior, Joseph Ratzinger tenha descoberto uma nova perspetiva sobre o que significa o seu papel, como Papa, para milhões e milhões de pessoas, mesmo nas situações de maior dificuldade.

Os mexicanos não deixaram por mãos alheias os seus créditos de país católico e reuniram-se, em festa, ao longo das estradas, num acolhimento que deixou marcas no próprio Papa, sorridente e visivelmente emocionado.

Coração no coração, Bento XVI e o povo mexicano escreveram uma das páginas mais bonitas do atual pontificado, mostrando que o Papa discreto – que procura mais atenção para as suas palavras do que para si - consegue falar ao povo simples e ouvir as suas manifestações de carinho e admiração.

A visita começou e continuou com intervenções fortes, visando os que se dizem católicos e devotos da Virgem, mas se esquecem, no seu dia a dia, das exigências próprias dessa pertença à Igreja.

O Papa não escondeu as suas preocupações, num país em que traficantes de droga se afirmam como benfeitores católicos, afirmando com dureza que não basta o sentimentalismo, que a fé tem de ter consequências concretas na sociedade, erradicando a violência e combatendo a pobreza.

As expectativas eram muitas e, naturalmente, muitos se interrogariam sobre que soluções traria Bento XVI, que fórmula mágica apresentaria num país verdadeiramente dilacerado pela criminalidade organizada e pela banalização da morte.

Ao afirmar que, nesta situação, não bastam “estratégias humanas”, o Papa sublinhou a necessidade de ir mais fundo e mais alto, superar o cansaço, redescobrir a alegria e a esperança que a fé deve saber gerar.

Estas lições valem para a América Latina, que recebe a segunda visita de Bento XVI, mas de forma geral aplicam-se em todos os países em que os cristãos foram perdendo a sua força transformadora e vivem numa dicotomia entre fé privada e compromissos públicos que descarateriza a sua ação, tornando irreconhecível, nas suas decisões, qualquer visão católica do homem e do mundo.

Octávio Carmo


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21/03/12

A urgência do fazer

A burocracia e o excesso de deferência servem para muito pouco, senão mesmo para inibir a criatividade

Num tempo em que a otimização dos recursos se exige, em que a emergência do fazer se impõe, o número de feriados e os dias de descanso, têm motivado a discussão sobre a produtividade das instituições.

Mas produzir e ser fecundo passa também por ultrapassar fatores internos de contraprodutividade, como a burocracia e outros hábitos instalados, que pouco se têm debatido.

Num contexto organizacional excessivamente submerso em pro formas e ofícios estéreis, a que o país não se pode dar ao luxo, a ausência do preceito fere ainda suscetibilidades demais. Creio ser necessário olhar para o tema de forma mais séria e consequente, como, aliás, o têm feito diversos outros países.

O que pode parecer organizado, o mais adequado ou profissional, tantas vezes confundido com eficiência, asfixia a ação e a inovação produtiva. A burocracia e o excesso de deferência servem para muito pouco, senão mesmo para inibir a criatividade e a motivação de quem visiona e sabe concretizar. Mas que nem sempre pode, obstruído que fica numa espécie de brando compasso, na delonga dos procedimentos, na ausência de agilidade.

Os novos meios de comunicação e as ferramentas digitais, quantas vezes subaproveitados, não resolvem tudo. Mas simplificar procedimentos, repensar circuitos decisórios, delegar competências em quem depende de si próprio para consumar as ações em muito beneficiaria este desígnio.

Idealizar não chega, saber sem consequências também não. Agir e concretizar são palavras de ordem, mas há que incentivar o desfecho, canalizar energias, delegar competências, fomentar a inovação, promover estruturas flexíveis e, sobretudo, funcionais.

Sandra Costa Saldanha


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16/03/12

Espaço para a autenticidade

É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo

Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?” (Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de uma primavera que não chegou a ser. Não sei como vai rebentar em nós a primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.

Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?” (Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo 14,2). Sem querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo, porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim, a uma apropriação. É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o mistério pascal fala.

José Tolentino Mendonça


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06/03/12

Homenagem a «um senhor»

Em ambiente de Quaresma, esta homenagem pode ser um pretexto de meditação acerca dos nossos modos de ser e de estar

Nos últimos dias, a nossa atenção foi convocada para a figura de dois ilustres membros do episcopado português: primeiro, num olhar de saudade, para D.Manuel Falcão, que Deus chamou a si; agora, para D.Eurico Dias Nogueira, que a arquidiocese de Braga homenageou, no seu aniversário natalício.

Ao senhor D. Manuel referiu-se, neste espaço, há uma semana, o Paulo Rocha. As minhas palavras de hoje cinjo-as, por isso, ao arcebispo emérito de Braga. Ao homenageá-lo, a arquidiocese cumpriu o dever de agradecer o serviço prestado-- pois que a esta igreja particular dedicou mente, coração, energia, paciência e sofrimentos.

Outros, com mais autoridade, podem referir-se à vida episcopal de D. Eurico Dias Nogueira como "um verdadeiro serviço de amor". Eu dou, apenas, o meu testemunho pessoal sobre quem foi, indubitavelmente, "pai, irmão e amigo".

Começo por uma declaração de interesses: vivi os momentos mais determinantes dos meus quase 38 anos de sacerdócio sob a orientação de D. Eurico Dias Nogueira. Dele recebi as principais missões e as orientações e conselhos para as levar a cabo. Com ele partilhei alegrias e dúvidas, em diálogos plurais, sempre tão exigentes como compreensivos. Posso, pois, dizer que o considero marcante na minha vida e lhe dedico uma filial estima. Entendo, no entanto, que tal não me retira a objetividade no que poderia afirmar das suas lições de vida.

Porque o espaço me condiciona, sublinho o ensinamento que, paradoxalmente, mais me marcou: o modo como tem vivido após deixar o paço e o governo ativo da arquidiocese.

Realmente, poderia D. Eurico Dias Nogueira ter-se pura e simplesmente retirado, para um merecido repouso no conforto da família e dos muitos amigos. Ou poderia ter-se dedicado a uma espécie de vida de comentador eclesial, nas fronteiras entre um hipócrita desprendimento e aquilo a que a minha veia irónica chama a magistratura da intromissão...

Mas não. O senhor D. Eurico entregou-se, generosa e discretamente, às tarefas que lhe foram solicitadas na vida diocesana, com a humildade de quem põe à disposição de outrem as suas muitas competências. Com uma serenidade exemplar e uma modelar silêncio. Sem comentários, juízos ou comparações, provocados ou consentidos.

O homem da escrita fácil e cuidada; das homilias estendidas no papel e distribuídas por pontos, numa espiral do pensamento; o homem do pormenor anotado numa agenda minúscula e da voz que precisava de aquecer para se erguer, soube sentar-se num escritório humilde e dele fazer a sua cátedra.

Tem um mês a nossa última conversa. Foi um percurso de memórias que ouvi desfilar frescas e desprendidas; embrulhadas na paulina disponibilidade de quem sabe ter combatido o bom combate e olha para além do tempo.

Em ambiente de Quaresma, esta homenagem pode ser um pretexto de meditação acerca dos nossos modos de ser e de estar. Tendo como referência este bispo a quem um amigo comum recentemente se referia assim:" D. Eurico é um senhor!"

Esta é, por isso, a homenagem a um senhor.

Padre João Aguiar Campos


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