24/11/11

África, Portugal, o Papa e o mundo

Ainda que o português não seja uma língua oficial da ONU (...), Bento XVI deu em África um contributo inquestionável para a sua divulgação e afirmação internacional

Bento XVI foi ao Benim levar uma mensagem de esperança num continente que ainda não aprendeu a confiar nas suas próprias capacidades e no potencial que tem para participar ativamente na construção de um novo mundo – embora esse estado de coisas seja mantido, também, por pressões externas, de quem lucra com o subdesenvolvimento e o amesquinhamento dos africanos.

Relativamente ignorada pelos media nacionais, a visita confirmou o português como uma língua da Igreja, particularmente em África, onde o testemunho de milhares de missionários foi homenageado pelo Papa.

O Benim conserva ainda uma fortaleza portuguesa, precisamente numa das duas cidades que foram visitadas, na ‘costa dos escravos’, memória histórica daquilo que, de pior, a humanidade é capaz, mas, acima de tudo, um alerta para as novas escravaturas e formas de colonialismo (incluindo o dos mercados) a que o novo documento papal – um verdadeiro mapa para o futuro da Igreja africana – aludiu.

Ainda que o português não seja uma língua oficial da ONU, por enquanto, Bento XVI deu em África um contributo inquestionável para a sua divulgação e afirmação internacional.

O Benim - berço do vudu, como foi por várias vezes designado -, recebeu o Papa com o respeito devido aos mais velhos, nas culturas africanas, como um sábio que trouxe palavras de paz e apelos à reconciliação, essenciais para que o futuro possa ser diferente das guerras e crises que marcaram a África pós-independências.

O clima foi, em vários momentos, muito semelhante ao célebre mundial de futebol da África do Sul (o das vuvuzelas), com cantos e manifestações constantes de quem esperava para ver Bento XVI, nem que fosse de passagem.

A resposta do Papa, que valorizou por diversas vezes a “tradição” africana, esteve à altura das circunstâncias e pode servir como ponto de referência para um diálogo nem sempre bem conseguido com a modernidade, que saiba promover a interculturalidade e a coexistência pacífica entre os povos de África, com as suas várias religiões.

Octávio Carmo


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15/11/11

Memórias vivas da Fé

Os Bens Culturais da Igreja saem reforçados, bem o sabemos em Portugal

De partida para Roma, D. Carlos Azevedo assumirá, como é sabido, funções de Delegado do Conselho Pontifício para a Cultura. Com competências específicas no campo dos Bens Culturais, a criação deste novo cargo pela Santa Sé, aliada à escolha de um bispo português, suscita-nos duas reflexões imediatas: o inequívoco reforço dos Bens Culturais da Igreja; e a responsabilidade acrescida para esta área em Portugal.

Desafiante missão que agora lhe é confiada, a D. Carlos Azevedo coube, no âmbito das suas funções como vogal da Comissão Episcopal da Cultura Bens Culturais e Comunicações Sociais, acompanhar a ação do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja nos últimos anos. Tarefa que assumiu com dedicado espírito de missão, empenho e rigor contagiantes, é da mais genuína justiça que se evoque, sem pretensão laudatória, o papel essencial que exerceu em Portugal na articulação entre fé, arte e cultura, como injusto seria ainda não lhe atribuir, pelas suas lições, rara visão e audácia, boa parte da responsabilidade neste complexo processo de valorização legível dos Bens Culturais da Igreja junto da sociedade em geral. D. Carlos fala para todos. Crentes e não crentes, muitos foram os que aprenderam a amar e a compreender este património, memória viva da fé cristã.

Em contexto de nova evangelização, a Igreja vê assim fortalecidas as suas competências nesta matéria. Mas muito continua por fazer em Portugal, desde logo junto dos próprios católicos, estranhamente apartados do universo da cultura e dos bens culturais.

Num misto de alegria e orgulho, que não encobre a tristeza de ver partir um amigo, relevo a consciência de um encargo acrescido para todos os intervenientes.

Os Bens Culturais da Igreja saem reforçados, bem o sabemos em Portugal. Saibamos também menorizar constrangimentos, aniquilar preconceitos e estar à altura de tamanha responsabilidade.

Um até breve, D. Carlos!

Sandra Costa Saldanha, diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja


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10/11/11

A nossa maratona

No meio daquela multidão cada um se sente, de repente, radicalmente só, ferido pela dor, provado por uma incógnita que não oferece tréguas

Acho que todas as vidas, mais longas ou mais breves, têm o mesmo comprimento: medem todas quarenta e dois Kms. Porquê? Por que essa é a extensão de uma maratona. Repito: se a vida se parece com alguma modalidade, penso que não anda longe dessa corrida bela e interminável que de uma maneira evidente coloca em prova a resistência, a esperança e a vontade. Hoje vi passar uns largos milhares de corredores e dei comigo a pensar no que faz estas pessoas correr. Não falo dos atletas profissionais que têm aí uma expressão importante da sua vocação e do seu talento. Falo destes milhares de mulheres e de homens comuns, que ao longo de um ano arranjam com esforço um tempo livre para os treinos necessários e que anualmente acorrem à maratona não para competir uns com os outros, mas talvez por alguma razão mais profunda, que nos endereça para zonas silenciosas do nosso próprio coração. Eles correm porquê? Muito simplesmente para se sentirem vivos ou a reviver. Para se lançarem a si próprios um desafio. Para sentirem, de forma mais palpável, que as múltiplas corridas em que quotidianamente se embrenham (em que nos embrenhamos) convergem para uma meta.

De que a maratona é uma parábola da vida não restam dúvidas quando ouvimos um maratonista descrever a sua experiência. O arranque, com o entusiasmo e a quase euforia. Depois a comunhão com os outros corredores e com o público que assiste. As palmas tornam-se um encorajamento e as palavras de confiança um redobrar da confiança própria. Nesta etapa nem se sente o chão e cada corredor como que levita. Diz quem sabe que as coisas mudam mais ao menos ao Km vinte e cinco. O desgaste físico e as primeiras incertezas trazem um abatimento interior inesperado. No meio daquela multidão cada um se sente, de repente, radicalmente só, ferido pela dor, provado por uma incógnita que não oferece tréguas. “É a primeira crise?”- perguntamos. Um maratonista ri-se e dirá que daí para a frente é só crises. E, por isso mesmo, ele tem a cada momento, na adversidade, de restaurar a possibilidade da esperança. A confiança não é um garantido seguro, mas uma marcha no aberto, para não dizer no desprovido. E, verdadeiramente, os corredores vacilantes que cruzam a meta não se podem queixar. A primeira parte desta maratona, por exemplo, era feita por mulheres e homens em cadeiras de rodas, e muitos deles não tinham pernas.

José Tolentino Mendonça



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03/11/11

Portugal ao longe

Mesmo sem se entender a língua, ou falando um português do tempo de Afonso de Albuquerque, há um povo que aí encontra a sua identidade, a venera, reza e ama com um enternecimento comovedor

500 anos não são nada na história. Andar 12 mil quilómetros de avião aos solavancos, chegar a um lugar, ver uma pequena fortaleza, dois barquinhos a percorrer a cidade como se fossem duas imagens de santos, os jovens numa correria para os acompanharem, alguns mais tisnados, junto ao mar a cantar melodias portuguesas tão distantes do original nas palavras como nas melodias, as casas marcadas por uma cruz, o bairro conhecido tanto como português, como cristão, faz, a quem chega, ainda que não seja pela primeira vez, estremecer de emoção por o povo a que pertence ser o mesmo que ali vive naquele bairro simples de pescadores.

Não sabem o nome do presidente da República nem do Cardeal-Patriarca de Lisboa, mas sentem-se transportados a uma origem que sendo, para um recém-chegado igual ao resto do povo de Malaca, traz um registo indefinido de fé e portugalidade próximos e naturais sem a mais pequena discussão sobre o laicismo, separação de poderes, profano e sagrado, passado e presente. Sabe-se que, mesmo sem se entender a língua, ou falando um português do tempo de Afonso de Albuquerque, há um povo que aí encontra a sua identidade, a venera, reza e ama com um enternecimento comovedor.

Expliquei que a imagem de Nossa Senhora de Fátima é a mais conhecida do mundo. Mas a que os portugueses agora lhes ofereceram é de Nossa Senhora da Conceição, foi coroada por um rei português e é a nossa padroeira. Foi um grupo de quinze jovens portugueses do ensino superior que levou o bandolim, a guitarra, o traje, a voz, um sorriso doce com um imenso respeito e dignidade, que acordou no coração dos presentes não apenas uma casa portuguesa, mas um povo lá dentro, com uma identidade para além do fado.

“Aqui sou mais do que eu”, diria Pessoa. E nada disto foi de organização burocrática. Aconteceu pela sensibilidade de quem cá passou e se apercebeu que por vezes, quanto mais longe se está mais se ama Portugal. E a fé que o integrou e integra, mudados os tempos e as vontades.

António Rego


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