23/06/10

Palavras e números

O nome de Portugal está nas bocas do mundo. Os últimos dias ficam marcados, incontornavelmente, pela morte do primeiro prémio Nobel da Literatura do país, José Saramago, assinalada pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura com discrição e abertura ao diálogo mesmo com quem se encontra mais longe das convicções que os católicos professam.

Registaram-se várias incursões em episódios passados, mais ou menos polémicos, em que o nome da Igreja esteve envolvido, embora em boa verdade a crítica de Saramago ao Cristianismo e ao texto bíblico (património de outros crentes, também) ficasse sempre limitada pelos “balizamentos ideológicos” que o referido Secretariado lamentava.

A morte do autor foi alvo de uma operação mediática gigantesca, que reduzia cada momento ao espectáculo, alimentado pelas naturais divergências que o escritor foi semeando ao longo da sua vida. A “novela” do local em que seriam depositadas as cinzas fica como exemplo de um jornalismo em que nem todos os profissionais do meio se podem rever.

Mais a Sul, o mundo olha também para Portugal, por outros motivos, igualmente mediáticos: o desempenho da selecção nacional de futebol no Mundial 2010. O jogo histórico contra a Coreia do Norte, sublinhado com sete golos, é celebrado como um feito inédito e uma prova de força, aparecendo uma multidão de novos “crentes” que, após anos de críticas à equipa, se converteram após terem presenciado esta espécie de milagre futebolístico.

O que fica para lá destes acontecimentos? Parece evidente a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio, que não diabolize ou divinize pessoas e números à velocidade da luz, que é a do actual mundo globalizado.

Um bom caminho está a ser sinalizado no trabalho desenvolvido e pensado pela Igreja Católica na sua relação com a cultura, em Portugal, que ganhou particular visibilidade após o notável encontro do Centro Cultural de Belém, aquando da visita de Bento XVI.

Aprender a ouvir, a falar e a calar, se for necessário, surge como um exercício particularmente difícil no mundo dos “sound bites”, em que se julga dono da razão quem gritar mais alto. Sem esse exercício, contudo, será sempre impossível ver para além da espuma dos dias…

Octávio Carmo


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15/06/10

Nação arco-íris

À distância, as expectativas só podem ser positivas. A realização de um campeonato do mundo de futebol no Continente africano gera inevitáveis esperanças para uma região à espera de conquistar dignidade, justiça e paz para a vida de todas as pessoas.

Segurança, construção de estádios e garantias de que toda a logística seria cuidada ao pormenor parecem ter sido as condições impostas por Zurique. Delas dependeria a realização de um evento global semelhante, nesta como noutra qualquer parte do mundo. Mas a escolha da África do Sul pela FIFA constitui um contributo decisivo para que o mundo conheça um povo, uma sociedade, uma Nação.
Europeus, asiáticos, africanos e, sobretudo, a mestiçagem crescente de culturas e peles. Assim se caracteriza essa "nação arco-íris", escrita, lida e vista no mundo inteiro no contexto do mundial do futebol.
África do Sul aponta como meta a reconciliação plena entre grupos e pessoas. Um ideal conquistado com o preço do sangue de muitos negros e, agora, de brancos. Sobretudo com a capacidade de perdoar, persistentemente afirmada detrás das grades por Mandela, à espera, em cada dia que passa, de um número crescente de seguidores. Na coragem do perdão, que martiriza, encontram-se as mais frutuosas sementes da feliz convivência entre povos, culturas, raças, etnias. Da vida em democracia.
Marca essencial da experiência cristã em qualquer parte do mundo, a promoção da reconciliação, o exercício do perdão merece todo o empenho entre as igrejas cristãs sul-africanas, onde o trabalho da Comissão Verdade e Reconciliação tem sido, desde 1995, fundamental para registar e resolver casos graves de violações de direitos humanos.
Mulheres e homens da Igreja Católica, missionários brancos, foram os primeiros a "invadir" guetos de africanos, aprendendo com eles, promovendo no seu interior a reconciliação.
Pastoral que continuam, por estes dias, também a partir do futebol. São disso exemplo o campeonato pela paz, o "Soccer Peace Tournament" entre adeptos de diferentes bairros, ricos ou pobres, ou o trabalho da rede "Talitha Kum", na prevenção e luta contra o tráfico de pessoas, ou ainda a iniciativa "Church on the ball", da Igreja Católica na África do Sul, para valorizar o desporto e acolher quem visita o país.
Se o mundial de futebol for um contributo efectivo para a plena reconciliação, são os africanos, do Sul ou do Norte, os grandes vencedores.
Paulo Rocha


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08/06/10

Diálogo em tempo de escombros

A relação do cristianismo com o espaço público é-lhe genética, pois foi aí que ele primeiro se formulou

Dialogamos pouco sobre o nosso viver colectivo e damos escasso tempo à audição daquilo que se recorta mais profundamente, sem a opacidade sôfrega dos agendamentos. Por isso é um texto obrigatório este que acaba de ser editado: «Diálogo em tempo de escombros. Uma conversa sobre Portugal, o Mundo e a Igreja Católica». Um jornalista com a dimensão profissional, cultural e humana de José Manuel Fernandes, desafia D. Manuel Clemente para um encontro construído em três andamentos: na primeira parte, o jornalista enuncia um núcleo pertinente de questões que gostaria de ver abordadas, quase à maneira de um diagnóstico interrogado do presente. D. Manuel Clemente ensaia uma resposta na segunda parte. E no terceiro round, chamemos-lhe assim, uma conversa epistolar entre entrevistador e entrevistado vem precisar e ampliar alguns aspectos do diálogo. O tempo é de escombros, mas não esta conversa, como o leitor rapidamente verá.

A relação do cristianismo com o espaço público é-lhe genética, pois foi aí que ele primeiro se formulou. Um dos espantos na fractura que Jesus e os seus seguidores introduzem face aos sistemas religiosos do tempo (primeiro o judeu e depois o helenístico-romano) é também o da produção e inscrição de uma experiência crente fora do espaço sagrado. Quem lê os quatro relatos evangélicos rapidamente se apercebe que Jesus desenvolve o seu percurso de modo ex-cêntrico em relação ao Templo (e claramente essa escolha revela a pretensão de superar o próprio Templo), elegendo espaços religiosamente neutrais, como a praça, a margem, o caminho, a casa, que são o lugar, por excelência, da coreografia humana com a qual o cristianismo dialoga. Na mesma linha, havemos de acompanhar Paulo de Tarso que prega tanto numa sinagoga, como numa escola de filosofia ou num teatro. Nesse sentido, é interessante olhar para o termo grego “politeuma” que no Novo Testamento cristão aparece com o sentido comum de pátria e de cidadania. Algumas traduções históricas do texto sagrado preferem verter aquele termo por “conversa”. E, de facto, a experiência cristã (também) é isso: o fazer e o refazer de uma conversa infinita.

É verdade que a Modernidade determinou uma recomposição do lugar público concedido ao religioso. Mas a Igreja não desiste de estar presente e de dialogar com a cultura. O regresso à concha (que o cristianismo nunca teve, nem nunca foi) determinaria o empobrecimento da reflexão e da própria vitalidade cristã. O mandato evangélico que institui a Igreja é um imperativo de construir uma presença cordial de esperança na itinerância do mundo. E neste livro temos um excelente exemplo.

José Tolentino Mendonça


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01/06/10

A ponte

Interessa potenciar esta visita como “surpresa” para os que estão perto e longe do Evangelho. Foi aberta uma nova ponte com o mundo laico

É natural que da visita do papa Bento XVI a Portugal fique mais o “acontecimento” no seu todo que o conjunto de 17 “discursos” que proferiu entre saudações, preces, entrevistas e homilias. Mas as suas palavras foram, de si, acontecimento. Se algumas foram circunstanciais e de protocolo outras, as principais, foram fruto de reflexão e proposta à Igreja e ao mundo em Portugal. Pena seria se, tanto a nossa sociedade civil, como a comunidade eclesial reduzissem tudo a um encontro de cortesia dum chefe de Estado ou duma apoteose simpática do “chefe” da Igreja.

O todo da mensagem do Papa foi repassado duma reflexão que terá acontecido dentro da nossa própria Igreja nas sugestões que de Portugal foram enviadas a Roma mas que, meditadas e assumidas pelo Sumo Pontífice, se transformaram em acto de magistério para o tempo que vivemos e o país que somos.

Será por isso de suma importância que as comunidades cristãs, no novo ano pastoral, cruzem os planos diocesanos, de paróquia, movimento, com a palavra mais actual do sucessor de Pedro sobre a nossa realidade humana e eclesial. Importa não desperdiçar em vagos considerandos este “testamento” riquíssimo que nos deixou Bento XVI que tem a ver com a nossa dignidade histórica, o diálogo com a cultura do nosso tempo, a importância do empenhamento social, a espiri-tualidade como fonte inspiradora das nossas vidas, a consagração vivida em fraternidade profunda, Fátima como uma mensagem inacabada, a evangelização como proposta e não imposição. E, à cabeça, a magistral entrevista concedida no avião, de improviso, com a fluência e a limpidez literária dum compêndio de sabedoria longamente meditado. Assim, iremos mais longe que a hospitalidade lusíada, o entusiasmo de multidões, as celebrações vivas de participação, a beleza e interioridade dos grandes momentos litúrgicos. Interessa potenciar esta visita como “surpresa” para os que estão perto e longe do Evangelho. Foi aberta uma nova ponte com o mundo laico. Não se pede que seja escrito um novo catecismo ou compêndio de pastoral, espiritualidade, evangelização ou moral. Mas podemos dizer que esta é a palavra da Igreja mais próxima no tempo e incarnada na realidade concreta do nosso país.

E que a esperança de que foi portador vá muito além duma alegria vaga e reverencial. E se alicerce nas razões profundas da nossa esperança que continuamente redescobrimos. A razão e a fé de Bento XVI vieram ajudar-nos a uma colocação harmoniosa do nosso crer e do amar o nosso mundo. Não podemos, seja a que pretexto for, desperdiçar este sinal que nos foi enviado.

António Rego

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