18/02/11

Morrer é só não ser visto

Num número que ninguém ainda consegue bem quantificar, mas que os poucos indicadores dão como preocupante e crescente, multiplicam-se as situações de isolamento humano, sobretudo na terceira idade

O verso certeiro de Fernando Pessoa que diz «Morrer é só não ser visto» ganhou, nos últimos dias, significados que nos deveriam desassossegar. As notícias que dão conta dos idosos que vivem e morrem em total solidão mostram-nos como a frase de Pessoa não é apenas uma alusão simbólica à invisibilidade dos mortos, mas se tornou uma descrição literal do que, entre nós, acontece aos vivos. Num número que ninguém ainda consegue bem quantificar, mas que os poucos indicadores dão como preocupante e crescente, multiplicam-se as situações de isolamento humano, sobretudo na terceira idade, precisamente quando o cuidado e o acompanhamento deveriam ser redobrados.

Por vezes, no cruzamento apressado das horas, deparamos com um rosto idoso que nos olha por detrás de uma janela, na nesga quase oculta de uma cortina, e fazemos por não pensar muito nisso. Mas que nos dizem esses olhos? Que nos dizem esses olhos que nos olham em silêncio, sedentos de proximidade e de palavra; esses olhos para quem tudo é adiado; esses olhos que se sabem deixados para o fim ou nem isso; esses olhos impotentes e, ainda assim, tão doces; esses olhos que tacteiam as coisas e já não estão certos de as reconhecer ou de as poder activar; esses olhos que desistem um milhão de vezes por dia e nenhuma delas sem dor; esses olhos que se deixaram sequestrar pela televisão a tempo inteiro; esses olhos vazios do que não viram, mas que não desistem de esperar; esses olhos atrapalhados na geografia que alteramos sem aviso; esses olhos que não conseguem perceber a literatura incluída de um mundo que, sem o merecerem, lhes é hostil? Sim, que nos dizem os olhos que encontramos regularmente por anos a fio, ou mesmo só por uns meses, que nos habituamos a reconhecer na nossa paisagem anónima e distraída e, de repente, deixamos de ver? «Morrer é só não ser visto». Deveríamos escrever o verso de Pessoa na Constituição da República e no nosso coração.

José Tolentino Mendonça


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08/02/11

O nosso dinheiro

É saudável a estima pelos dinheiros e bens públicos. Substituirá uma mentalidade de menosprezo que conduzia a autênticos vandalismos em desperdícios sobre o que «não era de ninguém»

Dizem os entendidos e até os desentendidos que é neste mês que vamos todos saber experiencialmente o que é a crise. Uns mais que outros. O que era uma teoria, uma ameaça, torna-se uma realidade notória na carteira, no banco, à mesa, em viagem, nos bens essenciais, na gestão doméstica, no salário mensal. Paralelamente há uma nova consciência do essencial e do supérfluo. Mas talvez o que mais se acentua é a noção de que o Estado não é apenas aquele monstro que nos rouba e engana. O Estado somos nós. Cada vez o povo sente mais o dinheiro que lhe paga nos impostos que sobem, nos montantes que injustamente o Estado distribui por quem não merece. E no roubo que constitui para a comunidade qualquer desvio de dinheiro ou bens que pertencem ao Estado. Assiste-se inclusivamente a uma espécie de policiamento sobre o carro, o salário, os benefícios de quem é funcionário do Estado. Diz-se simplesmente que é o “nosso dinheiro”. E cada cidadão como que se torna fiscal e administrador dos bens públicos julgando que quer e pode, mesmo sem mandar.

Convém dizer que é saudável a estima pelos dinheiros e bens públicos. Substituirá uma mentalidade de menosprezo que conduzia a autênticos vandalismos em desperdícios sobre o que “não era de ninguém”. Quando afinal é bem de todos nós.

Nesta transição forçada de mentalidade há muito juízo precipitado e incompetente na avaliação dos gastos públicos essenciais em saúde, transportes, segurança social, apoios a desprotegidos, como se se tratasse de usurpadores de bens de todos. O tempo certamente ajudará a uma clarificação. Mas é urgente um discernimento para que não aconteçam juízos nervosos e precipitados sobre aparências e interesses imediatos. A informação a céu aberto pode prevenir muitos abusos. Mas pode suscitar ajustes de contas selvagens, esquecendo o que é antes de tudo um Estado: uma casa de todos, onde todos têm os seus direitos e deveres e onde se deve reflectir o sentido de comunidade e partilha. É isto que o cristianismo pode acrescentar de novo a um debate sobre o público e o privado, a justiça nas retribuições, apoio aos mais desfavorecidos, serviço à causa pública, a política como o empenho pela cidade.

A presente crise já começou a dar alguns bons frutos. Mas interessa respeitar os tempos e as etapas para que possam reinar entre nós a justiça e a paz.

António Rego



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03/02/11

Discutimos?

Os tempos em que vivemos limitam os debates, infantilizam-nos, transformam o que deveriam ser legítimos intercâmbios de pontos de vista num jogo de palavras vazias, um karaoke da coisa pública

Há uma tendência para fugir ao debate e à discussão séria das mais diversas matérias, na sociedade portuguesa, que se pode transformar numa real ameaça à convivência democrática e tolerante.

Os tempos em que vivemos, mais dados à histeria mediática, limitam os debates, infantilizam-nos, transformam o que deveriam ser legítimos intercâmbios de pontos de vista num jogo de palavras vazias, um karaoke da coisa pública, que foge, necessariamente, do essencial.

Podemos dizer que isso beneficia, de facto, os que melhor sabem montar a sua máquina e vender a imagem, promovendo uma lavagem cerebral aos que não querem, não podem ou não sabem encontrar um contraponto para os factos e opiniões que lhes são apresentados como palavra final, definitiva e verdadeira.

Existem, obviamente, diversos graus de responsabilidade em toda esta situação: em primeiro lugar, a dos que mentem ou iludem para obter vantagens pessoais, dos mais diversos pontos de vista. Depois, se quisermos, a responsabilidade de quem reproduz e faz passar como boas, sem qualquer consciência crítica ou honestidade intelectual, afirmações e supostos factos sem qualquer ligação com a realidade ou verificabilidade possível.

Tudo isto exige mais atenção e maior capacidade de confronto a quem se encontra no meio de batalhas políticas, históricas, económicas ou legais, amplificadas pela globalização galopante da informação.

Num momento de crise económica e social, com um potencial latente de violência, é fundamental que exista, por parte de quem tem algum tipo de poder, a noção de que essa sua posição de influência e superioridade requer total honestidade e transparência, em vez de retórica vazia, calculismo, cinismo ou mesmo indiferença em relação ao sofrimento dos outros.

A delicada situação do país não pode justificar a imposição de ideologias contrárias ao sentir geral da comunidade, por muito que os problemas económicos e financeiros assumam uma dimensão esmagadora, gerando preocupação constante. Valores inegociáveis e irrenunciáveis estarão sempre acima destes jogos e serão o fundamento do futuro a construir, com o contributo das actuais e novas gerações. É sobre esses valores que vale a pena discutir.

Octávio Carmo


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