23/02/10

Esperança apesar do Mal

É impossível não ver a Cáritas como uma referência de compromisso, de esperança, de fé e de amor pelo próximo. Um sinal concreto de que é sempre possível acreditar

"Ilusão das ilusões”, disse Qohélet, “ilusão das ilusões: tudo é ilusão. Uma geração passa, outra vem; e a terra permanece sempre”. O que vale, afinal, o ser humano?

Após termos sido confrontados, há pouco mais de um mês, com as imagens tremendas da devastação no Haiti, chegam da Madeira outras igualmente devastadoras, que deixaram atrás de si um inimaginável rasto de morte e destruição.

Impossível não ficar perturbado perante a desfiguração quase completa de uma cidade, a perda de tantas vidas, o sofrimento de quem nada fez para o “merecer” nem o poderia prever.

É essa aliás a questão mais dolorosa para quem vive esta situação de longe e não tem de estar mergulhado na lama ou a tentar arrancar do seu caminho as pedras que impedem uma vida normal, construída tantas vezes à custa de muito trabalho e suor: Porque? Porque sofre o inocente? Porque morrem uma jovem mãe, uma criança, um idoso que dormia descansado?

A violência do que vemos é assim intensificada por estas perguntas que nos acompanham perante tais imagens. Custa acreditar que o sofrimento tenha um qualquer objectivo purificador, que a vida tenha um sentido para lá deste “sem-sentido” em que a natureza nos reduz a uma terrível insignificância.

Em boa verdade, é nestas situações que nos confrontamos com uma verdade incontornável sobre a nossa humanidade: não temos respostas. Pensamos que sim, gostamos de acreditar que o questionamento constante terá um resultado óbvio, feliz, mas às vezes nem mesmo o fim do caminho parece lançar alguma luz sobre o percurso que se acabou de fazer. Resta-nos questionar. E acreditar mesmo quando, aparantemente, não há esperança.

Job, símbolo bíblico do sofrimento do inocente, dizia a certa altura: “Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade”. Mergulhado num sofrimento terrível, tinha respostas definitivas. Enganava-se.

Sem respostas, pelo menos as que desejaríamos ou as suficientemente óbvias para que as possamos perceber, parece impossível que haja lugar para a esperança. Felizmente, há alguns dos melhores entre nós que não param perante estas calamidades e lançam imediatamente mãos à obra para que o terrível presente destrua apenas o passado (se assim tiver sido) e não hipoteque por completo o futuro.

No nosso país, quando chegam estes momentos, é impossível não ver a Cáritas como uma referência de compromisso, de esperança, de fé e de amor pelo próximo. Um sinal concreto de que é sempre possível acreditar. Em todas as lutas.

Octávio Carmo



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17/02/10

Alegria sem ressaca

Neste Carnaval, foi possível ver este «desfile» na cidade do Porto: milhares de jovens, de muitos países, à procura das «fontes da alegria»

Em cada ano, repetem-se os destinos caseiros do Carnaval: os mesmos nomes de cidades, de folias, caras e figurantes. São rotinas de há muitos anos, reditas pelos media qual anúncio das paragens de qualquer viagem de um inter-cidades. Mas permanecem por aí centenas e milhares de pessoas e, por isso, também os meios de comunicação social. Depois, são alinhamentos de noticiários, na imprensa, na rádio ou na televisão, que passam pelos mesmos corsos de "dias gordos", quase sempre na impossível imitação de ambientes latino-americanos.

Este ano foi possível conhecer, também pelas publicações e emissões mediáticas, propostas diferentes para dias de carnaval.

Como as primeiras, querem oferecer alegria a quem nelas participa. Com a grande diferença de não se reduzir a uma experiência "periférica" de qualquer história de vida. Ao contrário dos relatos carnavalescos, que sempre incluem longos meses de trabalho preparatório para a folia de breves dias, há propostas de construção da alegria capazes de, a partir de fortes experiências, contagiar vidas pessoais, familiares ou comunidades inteiras.

É esta a experiência que a Comunidade de Taizé faz todos os dias e propõe a um número cada vez mais alargado de jovens. Neste Carnaval, foi possível ver este "desfile" na cidade do Porto: milhares de jovens, de muitos países, à procura das "fontes da alegria". Não se tratou de um desmedido exteriorizar de alegrias, cujas mazelas apenas se descobrem nos dias seguintes. Em causa, a descoberta do que oferece razões para a alegria de todos os dias, de forma autêntica e consistente, longe de amanheceres com instabilidades físicas ou psicológicas: uma "alegria sem ressaca".

A expressão é do próprio Bispo do Porto, quando apresenta este encontro da comunidade de Taizé no contexto da Missão 2010. E aconteceu!

Não em 4 dias, mas em 4o, o ritmo da liturgia oferece também essa possibilidade. Como num Encontro de Taizé, o tempo da Quaresma é uma possibilidade de descoberta das fontes da alegria. Basta seguir as pistas da justiça, da partilha, da escuta interior!

Paulo Rocha



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09/02/10

A Igreja precisa de um virar de página

Se o Mistério de Deus se soletra pela tríade Verdade, Bem e Beleza, quer dizer que esta última integra o património íntimo que dá substância à própria Fé

Na linha dos seus predecessores, o Papa Bento XVI tem declarado que a Igreja precisa de celebrar um novo pacto criativo com o mundo das Artes. São palavras para tomar a sério e traduzir em cada realidade nacional. Não há razões para a Igreja realizar a sua missão (que tão intimamente se liga não só à Verdade e ao Bem, mas também à Beleza) de costas voltadas para os grandes criadores do seu tempo. Um catolicismo que descure a expressão da Beleza é seguramente um catolicismo diminuído.

A Beleza para a Igreja não é um ornamento. Se o Mistério de Deus se soletra pela tríade Verdade, Bem e Beleza, quer dizer que esta última integra o património íntimo que dá substância à própria Fé. Sem a Beleza a experiência cristã permanece incompleta, por que Deus é Beleza, esplendor, glória. Nós sabemos bem os riscos de um cristianismo puramente histórico, articulado simplesmente entre convicções e práticas. O cristianismo é também um sobressalto de infinito, paixão pelo absoluto, uma epifania que nos transcende, uma inexplicável emoção que nos derruba nos caminhos de Damasco que são os de todas as vidas. Dizia o Papa Paulo VI aos Artistas, num discurso que Bento XVI tem citado: "Nós temos necessidade de vós. O nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o Nosso ministério é pregar e tornar acessível e compreensível, aliás comovedor, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E nesta operação... vós sois mestres. É a vossa profissão, a vossa missão; e a vossa arte é extrair do céu do espírito os seus tesouros e revesti-los de palavra, de cores, de formas de acessibilidade… E se a Nós viesse a faltar o vosso auxílio, o ministério tornar-se-ia balbuciante e incerto".

A Igreja em Portugal precisa de um virar de página nesta matéria. Há ainda demasiados subprodutos que circulam, numa espécie de contrafacção estética e de ruído. Urge uma estação de exigência e o celebrar de um compromisso capaz de dar à nossa Evangelização uma estética consistente, coerente e contemporânea.

José Tolentino Mendonça






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02/02/10

Rua da República

Muitos evocaram as lições desoladoras da primeira República, nomeadamente em relação à Igreja. Mas também há muitos traumas clericais lembrados apenas de bens e privilégios perdidos

A República desceu à rua. Ou todas as crónicas do reino vão dar à Rua da República. Já compreendemos que não falta quem dela se apodere para dizer tudo o que já pensava. Já não me lembro bem dos que mal se lembravam daquele 5 de Outubro de 1910 - como muitos, hoje, do 25 de Abril têm uma imagem ténue. Lembro-me dum velhote que dizia não se tratar de nenhum regime mas apenas de uma forma de estarem contra a monarquia, a Igreja e a tradição. Havia manifestos, pasquins, comícios. Factos houve, como as comemorações da morte de Camões e o ultimato inglês, que foram aquecendo os ânimos para a estocada final na monarquia. Que, também se acrescenta, andava de péssima saúde e deixou saudades a muito poucos. São as turbulências da história.

A República, um facto, muitas leituras. Mas um acontecimento que marcou a nossa história do século XX e não nos é indiferente cem anos depois. Dá-se agora uma espécie de correria para cada corrente de leitura chegar primeiro à interpretação ortodoxa que defenderá como única e definitiva. Muitas vezes trabalhando a história à sua maneira e encaixando-a na ideologia já instalada. Assim, não haverá interpretação dos factos, mas o seu tratamento voltado para uma direcção pré-definida. Distorcida e estreita.

Do todo, algumas notas irão marcar as comemorações com alguns slogans que já estão, em trova, no vento: a lídima república contra a obscura monarquia; a revolta contra o conformismo do irremediável; o laicismo iluminado contra a Igreja retrógrada, a liberdade contra todas as opressões. E muitos ficarão por aqui, esquecendo atrocidades e roubos que em nome da liberdade se fizeram, os erros políticos, de palmatória que levaram o país a cair benignamente nos braços do 28 de Maio.

Mas a história não se faz sem sobressaltos. E importa por isso descobrir as mudanças radicais que, a bem ou a mal, se introduziram no nosso país. Diríamos hoje simplesmente: uma estrondosa mudança cultural. Nos pós 25 de Abril muitos evocaram as lições desoladoras da primeira República, nomeadamente em relação à Igreja. Mas também há muitos traumas clericais lembrados apenas de bens e privilégios perdidos. Urge por isso uma grande humildade e liberdade para ler correctamente a história. E com ela sempre aprender.

E actualizar uma lição para todos nós, cidadãos, profissionais da política, governantes e governados deste decénio: o momento que vivemos, nem monárquico nem republicano, é de alguma ansiedade face a muitos riscos que nos ameaçam perante a Europa, o mundo e nós próprios. O espectáculo do orçamento de Estado, e da previsível evolução da economia dão-nos a imagem dos caminhos tortuosos que temos a percorrer. Tão complexos como os tempos que se seguiram à implantação da República e ao 25 de Abril, com tantos escolhos na área social, pedagógica, familiar, institucional, religiosa, em clima de insegurança, desemprego, com números ínfimos de crescimento económico, e a certeza triste duma crise que - terá fim - mas deixará pelo caminho muitas vítimas entre as quais os próprios construtores do futuro que são os jovens.

É bom celebrar a história. Desde que se procure compreendê-la e aprender as lições que nos deixa. Seria muito bom celebrar a República de forma a mobilizar-nos com mais uma dura lição da história.

António Rego



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