31/03/10

Em defesa de Bento XVI

1. Confrontado com o alastrar de denúncias de abusos sexuais de menores por parte de membros do clero católico, e na sequência do trabalho desenvolvido enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Papa Bento XVI tudo tem feito para urgir a purificação da Igreja e acabar com a cultura de encobrimento que, durante décadas, foi usada em muitas dioceses de vários países – a carta aos Católicos da Irlanda, publicada a 19 de Março, é apenas o exemplo mais recente e vigoroso deste empenho do Papa.

2. Nesta busca de transparência e conversão, a Igreja Católica já foi mais longe do que qualquer outra instituição, pública ou privada – as quais, durante décadas, usaram da mesma política de encobrimento face a situações semelhantes vividas no seu interior. Isso não desculpa, como é evidente, o que aconteceu nas instituições da Igreja – pois estas devem sempre reger-se por padrões mais exigentes do que aqueles praticados pela sociedade. O facto é que apenas a Igreja Católica foi colo-cada no pelourinho. Mas compreende-se, se pensarmos que este julgamento público e sem direito a defesa acontece numa comunicação social ávida de escândalos e, em muitos casos, ao serviço dos “poderes de facto” que dominam a sociedade – embora encham a boca com a denúncia do suposto “poder” da Igreja.

3. Bento XVI, mais do que ninguém na Igreja, tem suportado as dores e penitên-cias desta longa quaresma, ainda sem fim à vista. Infelizmente, não poucos católicos têm acrescentado peso à cruz que ele vai corajosamente carregando: uns, pelo silêncio de quem não ousa uma palavra em defesa do Papa; outros, pela compla-cência com as mentiras que se vão publicando (veja-se o modo descuidado como até alguns media católicos trataram a mentira do New York Times sobre Bento XVI); não poucos, por palavras acintosas em relação a Joseph Raztinger, reveladoras da má fé com que, desde o início, acolheram a sua eleição à cátedra de Pedro.

4. Uma coisa, porém, é certa: como afirma Marcello Pera (Corriere della Sera, 17 de Março de 2010), os católicos que julgam poder ficar descansados, assistindo impassíveis à via crucis do Santo Padre, até à sexta-feira da paixão, ainda não per-ceberam nada: não perceberam que “esta guerra do laicismo contra o Cristianismo é total. É necessário lembrar o nazismo e o comunismo para encontrar algo semelhan-te. Mudam os meios, mas o fim é o mesmo: hoje como ontem, aquilo que se preten-de é a destruição da religião. [...]. A destruição da religião implicou, então, a destrui-ção da razão. Agora, não implicará o triunfo da razão laica, mas uma outra barbárie”.

5. Estes católicos não perceberam que a perseguição ao Santo Padre não é por causa dele, mas porque quem a leva a cabo sabe perfeitamente que toda a Igreja Católica sofrerá as consequências se, pela mentira e pela insídia, Bento XVI for moralmente destruído. E esse, sim, é o verdadeiro objectivo. E não perceberam também que de pouco lhes servirá permanecerem como espectadores, julgando, assim, defender o seu bom nome social, passando despercebidos aos olhos do ini-migo e caindo nas boas graças do mundo. Porque a barbárie que Marcello Pera vê no horizonte, com a destruição do Cristianismo na Europa, será também “a destrui-ção da Europa”, no lugar da qual restará apenas o multiculturalismo e o relativismo que tudo igualam pelo mínimo denominador comum.

5. Isto é o que os católicos “de braços cruzados” precisam de perceber. Voltando a Marcello Pera, defender Bento XVI não é necessário porque ele precise das minhas palavras – “Bento XVI permanece inexpugnável na sua imagem, na sua serenidade, na sua inteireza, firmeza e doutrina. Basta o seu sorriso para pôr em debandada um exército de inimigos”. Defender Bento XVI é necessário porque, nele, é a Igreja e o Cristianismo que estão em causa. É uma cultura e uma civilização. É uma ideia de Europa. E sem esta ideia, o que nos resta é a barbárie. Os teólogos “dissidentes”, os bispos “cautelosos” e silenciosos, os cardeais “críticos” podem não entender ou não querer entender isto. Oxalá haja quem os substitua na linha da fren-te, porque as batalhas que por aí vêm não serão menos duras do que esta que Ben-to XVI, quase sozinho, continua a travar.

Elias Couto


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29/03/10

Portas fechadas

Apenas estranhos como o Centurião e Nicodemos trabalhavam na sombra a convicção de que ali não estava o fim

Havia medo e não pouco. Os acontecimentos precipitaram-se. Tornou-se difícil distinguir amigos de inimigos. Testemunhas de acusação eram às centenas. Uma espécie de fenómeno misterioso se apoderou dentro e fora. Deixou mesmo de haver dentro e fora. Apenas multidão, povo, plebe. Entusiasta junto à portas de David, trajou-se de crueldade junto aos portões de Pilatos.

Os discípulos caíram no sono profundo de quem se coloca fora de cena. Pedro – de quem se havia escutado as palavras mais sublimes sobre Jesus – não escapa ao espectáculo de cobardia e indiferença perante a prisão e aviltamento do Mestre de palavra eterna. Só, rigorosamente só, Jesus teve de ir do Getsémani ao Calvário, apenas sob o insulto e o chicote. Um olhar enternecido de mulheres, a presença da Mãe à distância consentida, o arrastamento infindo de correntes, cruz e os farrapos humanos que lhe restavam. Nem um momento de quietude. Nem um vislumbre de luz. O céu e a terra adensa-vam numa espécie de marcha fúnebre em memória dum condenado sem glória nem retorno.

Por isso os apóstolos trancaram as portas com medo. Nada estava concluído apesar de Jesus dizer que “tudo está consumado”. Apenas estranhos como o Centurião e Nicode-mos trabalhavam na sombra a convicção de que ali não estava o fim. Um dos ladrões também, mas tinha partido. Um silêncio descrente se apoderou de todos, inclusive dos que desconfiavam dos guardas do túmulo que poderiam deixar escapar, por roubo, o corpo desse Nazareno que veio roubar a tranquilidade à cidade ocupada onde pouco acontecia. Outra vez fora adiada a vinda do Messias.

Estavam por isso bem cerradas as portas. E o Ressuscitado apareceu: a paz esteja convosco.

Hoje como há dois mil anos. Em ambiente de descrença e dúvida sobre Jesus, a Igreja, os sucessores de Pedro. Mesmo conscientes do seu pecado, os que seguiram Jesus continuam, vinte séculos depois, a celebrar convictamente a ressurreição. Na verdade Ele venceu a morte. E todo o mal. E todas as mortes. Por isso os seus discípulos não têm razão, hoje como ontem, de trancar as portas com medo.

António Rego


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20/03/10

Escolher o futuro

Confrontado com um conjunto de situações que em nada dignificam a Igreja Católica e aqueles que a têm de servir, na linha da frente, a opção de Bento XVI foi escolher o futuro

Para quem esperava uma espécie de “manual contra os abusos sexuais”, a carta com que Bento XVI aborda a questão da pedofilia entre o clero da Irlanda pode parecer surpreendente. Não é propriamente um conjunto rígido de instruções e procedimentos, mas uma reflexão mais ampla, marcada pela exigência de mudança e a certeza de que é possível acreditar, ter esperança, mesmo depois de uma crise tão grave.

Agiram muito mal os que trataram destes abusos como um “assunto de família”, no pior sentido, escondendo, relativizando, colocando acima dos valores da verdade e da humanidade para com as vítimas questões como a imagem da Igreja ou dos seus ministros.

O choque provocado pela revelação de tais abusos ultrapassa, em muito, o âmbito da Igreja. Como reconhece o próprio Papa, o caminho para recuperar a confiança na Igreja e curar as feridas provocadas a tantas pessoas é longo e doloroso. Mas é possível. A Igreja é mais, muito mais do que padres pedófilos – que aliás, não têm nela lugar.

Confrontado com um conjunto de situações que em nada dignificam a Igreja Católica e aqueles que a têm de servir, na linha da frente, a opção de Bento XVI foi escolher o futuro.

Explico: slogans como “tolerância zero” ou “nunca mais” dizem pouco se não forem acompanhados de uma acção concreta, que procure não só resolver o que de mal se fez no passado – atendendo em primeiro lugar às vítimas, logicamente -, mas também mudar comportamentos, pessoais e institucionais.

A dor provocada deve servir, neste momento, para potenciar uma revolução de largo alcance, que não se limite à visão “sexualista” dos acontecimentos. Em pleno Ano Sacerdotal, uma provação desta dimensão tem de ajudar a perceber que padres é que a Igreja quer para o século XXI. Outro ponto essencial é cultivar uma cultura de transparência, de verdade, em todas as dimensões eclesiais. Assumir o que está errado para que possa ser rapidamente reparado e haja espaço – aos olhos de todos – para observar também o que de bom e importante é realizado por toda a Igreja. Com coragem e determinação.

Octávio Carmo




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16/03/10

Descontar na educação

De investimento educativo falaremos se avaliarmos os 25 anos da história das Jornadas Mundiais da Juventude. Elas não trouxeram soluções completas para a educação cristã das novas gerações. Dir-se-ia que provocaram desafios.

A necessidade de ajustar o desejado ao possível é assumida com normalidade. Em contexto pessoal, empresarial ou nas estruturas que têm por objectivo principal contribuir para o bem comum, é cíclica essa exigência: porque são audazes os objectivos propostos, pessoal e comunitariamente; porque surpreendem sempre as contingências que envolvem qualquer execução de um programa ou projecto.

Iniciativas relacionadas com o complexo mundo da educação também não escapam a esta regra. Na família, na escola, no grupo social, na igreja. É sempre ajustável a meta desejada à alcançada: tanto em projectos pessoais como naqueles em que os seus promotores assumem a responsabilidade formativa, aceitando o desafio de, dessa forma, propor à sociedade actores para um mundo melhor.

Não poucas vezes, no entanto, esta normalidade é afectada. Incoerências pessoais ou enganos públicos fazem com que se sugira o inalcançável. Também na educação.

Falar em paixão pela educação é já falacioso. São muitos os protagonistas sociais que o declaram revelando quase imediatamente incapacidades de lhe corresponder. Para além da casuística que o denuncia, comprovam-no sobretudo atitudes centralis-tas na educação, o carácter supletivo onde se encaixam quase todos os projectos particulares ou cooperativos e os crescentes estrangulamentos familiares de quem opta por investir, mesmo economicamente, na educação dos filhos.

Para além do que é quantificável, sempre significativo, merecem interrogação as propostas que descontam na educação. Porque estarão a descontar nas pessoas e nas sociedades.

De investimento educativo falaremos se avaliarmos os 25 anos da história das Jornadas Mundiais da Juventude. Elas não trouxeram soluções completas para a educação cristã das novas gerações. Dir-se-ia que provocaram desafios. Tanto aos milhares de jovens que nelas participaram como aos responsáveis por fazer chegar aos mais novos as propostas do Evangelho.

Recordar essa iniciativa do Papa João Paulo II, assumindo potencialidades e virtualidades que evidencia, é despertar para tarefas inacabadas no âmbito da educação. Tanto as que depende de educadores como aquelas que só acontecem por vontade dos educandos.

Paulo Rocha





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09/03/10

Imaginar seis coisas impossíveis já antes do pequeno-almoço

A história contada faz mais do que reflectir uma coisa: a essência nela atestada perdura, habita-a por dentro

Parece só uma Alicemania. Mas penso que é mais do que isso. O redescoberto encanto pela personagem inventada por Lewis Carroll e revisitada agora pelo mágico olhar do cineasta Tim Burton, não é apenas fruto de uma oportunidade comercial para fazer render as histórias do tempo das tetravós. O que seduz em figuras como Alice (mas também em Peter Pan, Pinóquio, etc.) é, no fundo, o poder inesgotável que as histórias têm de representar o humano e de ajudá-lo a ser (ajudá-lo a maturar, a compreender-se, a crescer...) Este regresso às histórias mostra como a nossa cultura hiper-tecnológica e sofisticada, mas também solitária e abstracta, tem necessidade da força concreta, da emoção e da sabedoria das grandes parábolas.

O filósofo Walter Benjamin apontou o dedo à Modernidade dizendo que ela tende a eclipsar os contadores de histórias e que isso é uma perda irreversível, pois a arte de contar é a arte de transmitir não apenas conceitos, mas experiências, exemplos, modelos. Numa linha semelhante, o teólogo Johann Baptist Metz chama a atenção para a urgência de reconhecer e revalorizar «as estruturas profundas narrativas» da Fé, recuperando na educação religiosa «o magistério das histórias», pois só esse garante-nos assentarmos em experiências originais e autênticas. A história contada faz mais do que reflectir uma coisa: a essência nela atestada perdura, habita-a por dentro. Por isso é que o que nós contamos volta continuamente a ser uma força.

Num dos seus livros, Martin Buber conta esta história inesquecível: «O meu avo estava já paralisado. Um dia pediram-lhe também a ele para contar uma história, uma história que ele tivesse vivido com o seu mestre. Então ele contou como esse homem santo que era Baalschem tinha o costume de saltar e dançar quando rezava. E ao contar isto o meu avo levantou-se, e o relato envolveu-o de tal maneira que ele começou a saltar e a dançar para mostrar como o seu mestre fazia. Desde esse instante ficou curado».

Não tenho dúvidas que Alice é muito útil. E que vale bem a pena escutarmos o seu conselho de imaginar, ainda antes do pequeno-almoço, uma mão cheia de impossíveis.

José Tolentino Mendonça


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02/03/10

Será o fim do mundo?

Nada sabemos fechados no casulo estreito do nosso tempo, do nosso espaço e até dos factos que nos parecem o fim do mundo e que não passam duma gota de água oceano incomensurável de Deus

Acontece no dia-a-dia. Ou melhor, num dia entre muitos dias. Parece que se acorda com tudo a correr ao contrário. O trabalho urgente a concluir e chega um telefonema a decretar outro mais urgente, uma dor de cabeça que não vem a propósito, um assunto que chegou ao fim mal concluído, um problema novo que se interpôs a todos, alguma sensação de nervosismo com a ideia de que tudo corre mal. Para não falar no que está por fazer, na culpa de alguns insucessos, choques, tensões, com o ego de rastos, a triste sensação de incapacidade para iniciar um novo projecto, o cansaço que desaba e parece bloquear qualquer saída para qualquer problema. E tudo se enrola numa visão mais alargada na profissão, na família, no país de aspecto insolúvel, na economia que parece de terra queimada, na corrupção e esperteza como segredo de triunfo, no poder arrogante dos vencedores de sempre. E depois o fio da história, o bem e o mal, a incerteza do fim, a dúvida sobre o amanhã, os tons carregados de cinzento que se abatem sobre o humor, a resistência, a alegria, a relação com os outros, a estima por si próprio. E uma sequência de tragédias naturais exaustivamente exibidas cujas origens reais não sabemos deslindar. Tudo embrulhado na ementa informativa servida a cada refeição, numa selecção quase sádica e macabra de acontecimentos como se não houvesse outra forma de pintar a história a não ser em cores de sangue e dor, com tiros, lágrimas e gemidos lancinantes à mistura.

Será esta uma representação real da vida ou estaremos marcados pela náusea de Sartre, o niilismo de Nietzsche, o desespero de Hamlet, a fúria de Herodes e a loucura de Hitler, ou a depressão e ansiedade dum pós modernismo insano?

Bem diferente é a teoria de Jesus. E a sua prática: o desprendimento dos “lírios do campo”, a providência sobre “os cabelos da vossa cabeça”,a certeza de que “nada do que pedimos é em vão”, a confiança “no pão que nos concede” em vez do escorpião, a certeza de que Ele venceu o mundo – tudo isso que nos sustenta – e nos projecta para além do desencanto que pode ser um dia mal passado ou uma visão azeda da história. Nada sabemos fechados no casulo estreito do nosso tempo, do nosso espaço e até dos factos que nos parecem o fim do mundo e que não passam duma gota de água oceano incomensurável de Deus. Há negrumes na alma que apenas a sabedoria de Deus pode romper.

António Rego




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