26/10/10

Liberdade e Cidadania

Não podemos aceitar que, em sociedades legitimamente laicas, todos nos tenhamos de comportar em público como ateus

A celebração de um Sínodo dos Bispos para o Médio Oriente permitiu que, durante duas semanas, se pudesse colocar no centro das preocupações de toda a Igreja, e não só, a situação verdadeiramente dramática dos cristãos que resistem na terra onde a sua fé nasceu.

Muitos deles vivem, efectivamente, numa terra de ninguém: são árabes, sem serem muçulmanos; são católicos, mas não celebram, na sua maioria, com o rito latino, mas segundo a sua própria tradição; amam a sua pátria, mas esta não lhes reconhece plena cidadania. Esta situação, que representa uma carga quase insuportável, pode ser vista, contudo, como uma missão de sacrifício, de ponte entre dois mundos que se conhecem mal e que se devem respeitar mais.

Uma das chaves para esse respeito passa, como sublinharam vários intervenientes no Sínodo e o próprio Bento XVI, pelo respeito da liberdade religiosa. Esta não se conquista pelo medo e seria muito ridículo pensar que as comunidades teriam de representar uma ameaça às suas sociedades para ganhar o respeito de quem as governa.

Não estamos a falar de uma liberdade de culto, privada, mas de um conjunto de condições jurídicas que se estendem à educação, ao direito de associação, à profissão pública da fé, com consequências na vida concreta e no comportamento, na organização da vida social.

Os participantes no Sínodo insistiram muito nesta necessidade de reconhecimento pleno da sua condição de cidadãos, cristãos, mesmo quando nasceram e vivem num país de maioria islâmica. No Ocidente, esta necessidade é vista muitas vezes com distância, mesmo desprezo, porque acima da dignidade humana estão valores económicos, jogos políticos e interesses particulares.

Se ninguém, entre nós, concebe hoje que se possa obrigar um ser humano a professar uma fé, algo em que não acredita, deve ser igualmente inconcebível impedir que um ser humano professe a sua fé.

Também nas nossas sociedades é preciso aprender as lições que os cristãos sem medo do Médio Oriente nos dão todos os dias. Respeitar a consciência é respeitar as suas escolhas e convicções, também do ponto de vista religioso.

Porque não podemos aceitar que, em sociedades legitimamente laicas, todos nos tenhamos de comportar em público como ateus, em nome de uma suposta tolerância.

Octávio Carmo





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19/10/10

Criatividade na missão

Ser criativo é uma atitude, é uma predisposição que se pode construir, transformar, criar. Não é uma fatalidade. Depende, acima de tudo, da vontade, de pequenos gestos

Foi num diálogo entre amigos que surgiu a pergunta: então o teu trabalho como vai? Não estás cansado de fazer a mesma coisa?

Tomei nota do que interessava saber: mais do que a ocupação ou a implicação pessoal num determinado trabalho, o valor estava na atitude com que o mesmo se desenvolvia.

Não sei qual a ocupação desses amigos, que se reencontravam. Mas imagino que a mesma preocupação terá de se ter em conta no desenvolvimento de qualquer profissão. Também na responsabilidade por todas as missões.

Há muitas décadas que se faz depender da criatividade o futuro pessoal, profissional e social. As lideranças de cada época, de todos os grupos sociais ou empresariais, rapidamente se entregam aos seus elementos mais criativos. Para benefício desses grupos ou empresas.

Ser criativo é uma atitude, é uma predisposição que se pode construir, transformar, criar. Não é uma fatalidade. Depende, acima de tudo, da vontade, de pequenos gestos. Basta, em qualquer circunstância, registar uma pequena ideia e fazer dela um instrumento de trabalho.

Tempos de crise, os que se vivem, reclamam atitudes criativas na economia, na acção social, na educação, na família. Procuram-se ideias novas nas empresas, nas instituições públicas, nas organizações e nos grupos sociais para fazer extraordinariamente bem feito tudo o que é necessário fazer, uma ou muitas vezes, mas sempre como se fosse a única.

A actividade missionária, a comunicação da Boa Nova, reivindica a mesma atitude criativa.

Há 2000 mil anos, Jesus Cristo pediu aos que o queriam seguir que fossem "sal da terra". Hoje - como nesses tempos, talvez - alguém se perguntava: como ser "sal da terra" em ambientes de fortes odores e sabores.

A pergunta surgiu no interior de um debate sobre projectos de comunicação, na Igreja Católica, nomeadamente os que se desenvolvem nas plataformas digitais, palco para todas as mensagens. E para afirmar a necessidade de emprestar atitudes sempre criativas a todos os anúncios do Evangelho: os que se desenvolvem coração a coração e os que se lançam no anonimato de redes digitais, onde nem sempre se sabe onde "cai a semente".

Em todos os palcos é imprescindível estar, com criatividade. E, felizmente, os bons exemplos sucedem-se. Na edição desta semana, a apresentação do projecto sinodal da Diocese de Viseu comprova-o.

Paulo Rocha


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12/10/10

Para que serve a Economia?

A Economia deixa de ser apenas um processo administrativo, uma arte de gestão corrente e passa a colocar no centro da sua finalidade o serviço integral à Pessoa

Há uma frase lapidar de Carl Schmitt em relação aos Estados modernos que importa recuperar: «Todos os conceitos decisivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados». Isto é, na origem de paradigmas fundamentais que nos regem, como por exemplo a Economia e o Governo, e que hoje regressaram (Deus sabe com que desespero) ao centro do debate público em Portugal, está a influência determinante da teologia cristã, sobretudo nas suas estações bíblica e patrística.

O termo Economia (do grego, Oikonomia) significa literalmente “norma ou administração da casa”. Começou por conhecer um uso profano em autores como Aristóteles (que toma o conceito não como uma ciência, mas como uma actividade de ordem funcional), Xenofonte (que utiliza a sugestiva imagem da articulação dos dançarinos numa roda para falar do controle e da precisão necessários ao seu bom funcionamento) ou Quintiliano (a Economia torna-se a ordenada disposição da matéria de um discurso).

Uma opinião muito difundida reconhece que é na esteira de São Paulo que primeiro se oficializa um significado teológico na palavra Economia. Veja-se o passo da Carta aos Colossenses: «Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, segundo a economia de Deus, a qual me foi dada para levar à plena realização a Palavra de Deus, o mistério escondido ao longo das gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos» (Col 1,24-25). Ou aquele da Carta aos Efésios: «[Deus] manifestou-nos o mistério da sua vontade, segundo a benevolência que nele expõe para a economia da plenitude dos tempos, para recapitular todas as coisas em Cristo» (Ef 1,9-10). No pensamento paulino, há uma aproximação estruturante entre os termos Economia e Mistério. A Economia é a tradução histórica, o trocar por miúdos (digamos assim) do desígnio de Salvação que Deus tem para o Homem. A Economia deixa de ser apenas um processo administrativo, uma arte de gestão corrente e passa a colocar no centro da sua finalidade o serviço integral à Pessoa.

É verdade que hoje o conceito de Economia voltou ao âmbito profano ou secular. Mas se não conservar uma ressonância mais lata, serve para quê?

José Tolentino Mendonça


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05/10/10

Só nos resta a inteligência

Os cem anos da República portuguesa cruzaram-se com os dois mil anos da Igreja Católica. E, em Portugal, ambas protagonizaram um século.

De fragmentos se faz a história. Quem a realiza, quem a lê e quem a conta. Nada envolve tudo ou tudo explica. Multiplicam-se as máquinas da memória, a declinação de dados, o cruzamento de factos. A intercepção com as ideologias, a proximidade com os elementos antagónicos, a manipulação segundo os envolvimentos favoráveis ou de desconforto, faz da história um instrumento de busca, na purificação constante das águas da memória. Nem vale a pena misturá-la com histórias. Ou carregá-la de adjectivos, hipérboles, dramas, ou simples colorações de circunstância. Ninguém é quimicamente puro nas análises que ensaia porque ninguém sabe a história toda nem todas as histórias. Como o futuro, o passado límpido apenas a Deus pertence.

E há o tempo. «O passado não cessa de nos surpreender, mais que o presente, mais que o futuro talvez», diz Jean-Claude Carrière em diálogo com Umberto Eco. Cem anos de implantação da República em Portugal têm muito a ver com este todo. Nas diferentes narrativas dum facto que não é acontecimento dum dia ou explosão duma hora. Remexe muitas páginas da história e traz permanentes surpresas, enquanto insinua que tem tudo dito e feito. Daí, a procura honesta e rigorosa dos enquadramentos, causas próximas e remotas, intervenientes de primeiro plano ou programadamente escondidos. Com a humildade de quem sabe que a história é uma recolha meticulosa de fragmentos que parecem ser um todo, não podemos cansar-nos de procurar as linhas mestras que a sequência vertiginosa dos séculos foi criando como um vulcão paciente que atingiu altíssimas temperaturas e no arrefecimento progressivo e lento foi criando montanhas, planícies, desertos, oásis, terras áridas e rios abundantes. Sem nunca desistir da sua revolução criadora ao espalhar por pátrias infindas as suas lavas mornas. Os cem anos da República portuguesa cruzaram-se com os dois mil anos da Igreja Católica. E, em Portugal, ambas protagonizaram um século, tiveram encontros e desencontros com leituras contrárias, desdobrando os mesmos factos em dividendos que geraram algumas guerras religiosas no meio de muitas guerras civis. A República não é uma data única. É um rasto de tempo num pequeno espaço chamado Portugal.

Que se retome a memória. Mas que nunca se perca a inteligência. Foi no contexto das novas memórias que Michel Serves o afirmou. Mas que cabe neste tempo de boas e más memórias que estamos a celebrar.

António Rego


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