Diálogo em tempo de escombros
A relação do cristianismo com o espaço público é-lhe genética, pois foi aí que ele primeiro se formulou
Dialogamos pouco sobre o nosso viver colectivo e damos escasso tempo à audição daquilo que se recorta mais profundamente, sem a opacidade sôfrega dos agendamentos. Por isso é um texto obrigatório este que acaba de ser editado: «Diálogo em tempo de escombros. Uma conversa sobre Portugal, o Mundo e a Igreja Católica». Um jornalista com a dimensão profissional, cultural e humana de José Manuel Fernandes, desafia D. Manuel Clemente para um encontro construído em três andamentos: na primeira parte, o jornalista enuncia um núcleo pertinente de questões que gostaria de ver abordadas, quase à maneira de um diagnóstico interrogado do presente. D. Manuel Clemente ensaia uma resposta na segunda parte. E no terceiro round, chamemos-lhe assim, uma conversa epistolar entre entrevistador e entrevistado vem precisar e ampliar alguns aspectos do diálogo. O tempo é de escombros, mas não esta conversa, como o leitor rapidamente verá.
A relação do cristianismo com o espaço público é-lhe genética, pois foi aí que ele primeiro se formulou. Um dos espantos na fractura que Jesus e os seus seguidores introduzem face aos sistemas religiosos do tempo (primeiro o judeu e depois o helenístico-romano) é também o da produção e inscrição de uma experiência crente fora do espaço sagrado. Quem lê os quatro relatos evangélicos rapidamente se apercebe que Jesus desenvolve o seu percurso de modo ex-cêntrico em relação ao Templo (e claramente essa escolha revela a pretensão de superar o próprio Templo), elegendo espaços religiosamente neutrais, como a praça, a margem, o caminho, a casa, que são o lugar, por excelência, da coreografia humana com a qual o cristianismo dialoga. Na mesma linha, havemos de acompanhar Paulo de Tarso que prega tanto numa sinagoga, como numa escola de filosofia ou num teatro. Nesse sentido, é interessante olhar para o termo grego “politeuma” que no Novo Testamento cristão aparece com o sentido comum de pátria e de cidadania. Algumas traduções históricas do texto sagrado preferem verter aquele termo por “conversa”. E, de facto, a experiência cristã (também) é isso: o fazer e o refazer de uma conversa infinita.
É verdade que a Modernidade determinou uma recomposição do lugar público concedido ao religioso. Mas a Igreja não desiste de estar presente e de dialogar com a cultura. O regresso à concha (que o cristianismo nunca teve, nem nunca foi) determinaria o empobrecimento da reflexão e da própria vitalidade cristã. O mandato evangélico que institui a Igreja é um imperativo de construir uma presença cordial de esperança na itinerância do mundo. E neste livro temos um excelente exemplo.
José Tolentino Mendonça
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