26/01/10

O Divino nas ruas

O abismo do mal, que num segundo sorve as realizações de tantas vidas, é um desafio permanente para crentes e não crentes, que lhe procuram um sentido


A situação que se vive no Haiti é uma questão incontornável nas últimas duas semanas e tem gerado as mais diversas reacções, análises e abordagens. A dureza das imagens, eventualmente a ultrapassar o que seria aconselhável, nalgumas circunstâncias – tem servido vários interesses, até porque a guerra das audiências não conhece tréguas, mas tem também suscitado reacções de altruísmo e generosidade que são sempre de registar.

Nesta diversidade, ouvi com espanto a intervenção de um experimentado jornalista, que dava conta de um suposto afastamento das populações haitianas de práticas religiosas ou do recurso ao sobrenatural. A conclusão do repórter é que os homens e mulheres atingidos pelo sismo tinham descoberto, afinal, que não é do além que obtêm protecção.

Percebe-se que se pergunte por Deus numa hora de tragédia. O abismo do mal, que num segundo sorve as realizações de tantos e tantas vidas, é um desafio permanente para crentes e não crentes, que lhe procuram um sentido.

Basta lembrar o que aconteceu no terramoto de Lisboa, a 1 de Novembro de 1755. Lisboa era uma das capitais culturais do mundo e a sua destruição consternou intelectuais como Voltaire ou Kant. Nessa altura, a racionalidade humana assumiu os seus limites, marcando assim toda a reflexão filosófica subsequente.

O nosso tempo tem grandes pensadores e esperamos que o terramoto no Haiti desperte as suas reflexões. Até porque os nossos contemporâneos merecem mais do que uma reportagem a “constatar” que o divino já não mora ali.

Em boa verdade, é quase inevitável perguntar por Deus nestas circunstâncias, mas não é honesto esquecer, com essa pergunta, aquilo que é da responsabilidade de cada ser humano. O divino não se manifesta no furor dos cataclismos, mas nos pequenos gestos que alteram a vida de quem nos rodeia, nesta aldeia global em que ninguém é um estranho.

Não será fácil perceber o que se passa no coração dos haitianos. Lembro, contudo, que muitos dos que têm sido salvos dos escombros atribuem a sua sobrevivência a uma força divina que, de uma forma ou outra, sentiram presente ao seu lado, quando a esperança desaparecia. Seria tentado a confiar mais em quem saiu vivo deste verdadeiro inferno do que num qualquer repórter demasiado lesto a expulsar o divino da vida de quem ainda sofre, ama e espera num futuro melhor. Porque há coisas que não se podem contabilizar.

Octávio Carmo



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19/01/10

Entre Ruínas

Neste oceano de ruínas perguntamos pela bondade de Deus, pela ordem do universo, pela inteligência harmoniosa das forças natureza

O Haiti entrou no grande teatro do mundo por motivos bem diferentes daqueles por que frequentemente era noticiado: as crises políticas e os golpes de Estado. À notícia do sismo sempre se juntou uma outra não menos dramática: a pobreza. Um dos países mais pobres do mundo, foi o subtítulo que sempre acompanhou as grandes manchetes sobre um sismo que teve apenas mais um ponto do que aquele que recentemente nos atingiu. Poderíamos ter sido nós.

Um acontecimento desta ordem, num grau de tragédia tão intenso, deixa-nos sempre um oceano de questões que vamos arrumando desajeitadamente até que o tempo nos canse, as imagens nos saturem e um outro evento nos mude os registos da emoção. Desta vez não foi excesso de chuvas, desabamentos, furações, possivelmente por maus-tratos que vamos dando à gestão do frio e do calor nos nossos mecanismos de civilização. Desta vez não sabemos bem o que há a fazer com placas tectónicas que se movem poucos quilómetros abaixo do mar e estoiram com o rés-do-chão do nosso planeta onde construímos as nossas casas e desenhamos as nossas cidades, desde o barracão rudimentar ao palácio presidencial.

Neste oceano de ruínas perguntamos pela bondade de Deus, pela ordem do universo, pela inteligência harmoniosa das forças natureza. E deixamos, primeiro, tudo cair num magoado silêncio. Paradoxalmente a todas as perguntas que a morte e o sofrimento nos lançam, juntamos sempre uma: "a quem iremos, Senhor?"E podemos percorrer o pranto que se espalha em muitos salmos, as desolações que são lamentadas pelos profetas, as dores e ruínas que foram acompanhando a humanidade que cronistas, pintores, poetas e místicos plangeram. A Jerusalém destruída, o povo no exílio, o pranto e as lágrimas. E a cruz, com a sua dramática contradição, apenas iluminada no mistério de Deus. Quem mais nos poderá aquietar o coração?

Aqui se abre outro capítulo: foram destruídas muitas casas que nunca mereceram esse nome. Testemunhamos violência e desespero em momentos extremos. Assistimos a gestos de ternura e humanidade mais notórios nestes momentos. Chegaram olhares de solidariedade do mundo inteiro que foi assinando a evolução da tragédia a par de gestos sublimes que ela suscitou de abnegação e heroísmo. Atrasadas para a urgência, foram e vão chegando sinais de ajuda, fraternidade, renúncias dum mundo que tantas vezes parece leviano mas que tem momentos - quantas vezes na sequência de tragédias - em que traz ao de cima a humanidade que o habita.

O Haiti vai ressurgir das cinzas. A intensidade do sofrimento é excessiva para justificar a reconstrução dum país. Mas é mais uma paradoxal lição para a humanidade. A fé, em vez de obstáculo para todo este cenário, oferece a chave de redenção que insere nas contas e no tempo de Deus o que queremos encaixar apenas nos nossos cálculos imediatos. E na acção concreta dos homens. Com as energias de ressurreição que estão no íntimo de todos nós.

E um apelo, para que o Haiti e todos os Haitis do mundo sejam conhecidos e amados por outras razões que não a tragédia.

António Rego




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12/01/10

Talvez devêssemos ouvir Mozart juntos

Os passos mais consistentes no caminho ecuménico foram sempre sustentados por histórias concretas de amizade

Os passos mais consistentes no caminho ecuménico foram sempre sustentados por histórias concretas de amizade. E se há um desafio urgente a acolher, em vista dessa oração que Jesus faz («que todos sejam um» Jo 17, 22), é precisamente esse: o do mútuo conhecimento entre os cristãos, o da relação franca, tecida na gratuidade, na descoberta, no prazer de estarmos juntos, em trocas criativamente cordiais que avizinhem não só a razão.

No significativo património ecuménico que o século XX construiu, destacam-se, como pilares, histórias assim. Recordo aquela vivida por dois nobilíssimos teólogos: Hans Urs von Balthasar, católico, e Karl Barth, da Igreja Reformada. Conheceram-se em Basileia, nos anos 40, e certamente conversaram muito sobre as suas visões teológicas, sobre os grandes mestres da tradição cristã que revisitavam, sobre conceitos, distinções e distâncias. Conheceram-se a esse nível tão a fundo, que Balthasar escreveu uma introdução ao pensamento de Barth, hoje unanimemente considerada na bibliografia crítica daquele autor. Mas talvez essa sintonia não fosse possível, se a uni-los não estivesse também uma arrebatada paixão pela música de Mozart, que escutavam juntos naqueles anos tão carregados de incerteza, vendo (ou melhor, ouvindo) nela um sinal palpável da Redenção.

Recordo igualmente uma das imagens mais radiosas do cristianismo contemporâneo: a do abraço entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I, dado em Jerusalém, como primeiro gesto do perdão recíproco que, mais adiante, viria a ser declarado entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa de Constantinopla. Quarenta anos depois, com palavras emocionadas, João Paulo II haveria ainda de evocá-lo, tendo a seu lado o sucessor de Atenágoras, Bartolomeu I. Declarou o Papa: «aquele abraço tornou-se símbolo da reconciliação que desejamos!».

Semana de Oração pela unidade dos cristãos! Vamos juntos ouvir Mozart?

José Tolentino Mendonça



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05/01/10

Entre o lixo e o paraíso

A Igreja diz-nos que isto é mais que uma questão técnica. Não envolve apenas os gelos e degelos, os mares e as marés. Envolve-nos.

“A natureza não é um monte de lixo lançado ao acaso”.Disse-o Heraclito de Éfeso há 2500 anos. Lembrou-o Bento XVI na recente mensagem para o Dia da Paz. Há uma lei interna, secreta, inteligente, no coração das coisas, que remói a história, vai muito para além da escassez das nossas contas e das nossas vidas. Tudo nos foi confiado por Deus. Não somos donos dos vulcões, ventos e tempestades. Nem fazemos nascer as manhãs de suave brisa ou os tons sublimes do luar. Mas a Terra, ínfima parcela do universo, é a nossa casa. E merece o nosso olhar de respeito para que nos abrigue e permita em cada dia o pão e a alegria sobre a nossa mesa.

Para os lados de Copenhaga disseram que está doente o nosso planeta, sufocado pelos fumos de destruição que inventámos e exploramos sem medirmos o alcance do que jogamos em fogo, terra, ar e a água.

A Igreja diz-nos que isto é mais que uma questão técnica. Não envolve apenas os gelos e degelos, os mares e as marés. Envolve-nos. Lembra-nos o mistério de termos o mundo nas nossas mãos. Cada gota de orvalho vale um oceano. Cada grão de areia é como uma enorme praia. Cada minúscula semente tem a força duma floresta. Cada partícula de ar é um pulmão de vida que sofregamente respiramos.

No cosmos há “um desígnio de amor e de verdade”. A herança da criação pertence à humanidade inteira.

É o futuro que está em causa. O futuro é a grande palavra de fé, inteligência e humanidade. Quer dizer que acreditamos no para além de nós, no tempo para além do nosso, do viver, pensar e agir para além de nós. E que sentimos o orgulho de estarmos unidos a uma humanidade para além do indivíduo que cada um de nós é. É isso a solidariedade com o futuro. A ecologia humana é esse tratamento consciente e uno do homem e da terra, do pó a que havemos de regressar, da mão direita de Deus onde repousará o nosso coração. É na purificação da nossa mente que começa a pureza da terra. É no ethos como ponto de ligação que estabelecemos pontes com o universo. Na harmonia do homem e da natureza como uma fraternidade tranquila, proclamada e vivida por Francisco de Assis.

E se descermos ao concreto dos nossos hábitos quotidianos na relação com a energia, a água, o céu, o mar, o frio e o calor, sentiremos que a Terra é um problema político, cultural, económico e tecnológico. Mas é um problema ético, humano, capítulo segundo do Génesis que todos nós reescrevemos. Ninguém no planeta está fora do alcance de edificar, dominar e respeitar a Terra que, como nós, brotou das mãos de Deus. Trata-se dum poema muito mais belo e decisivo que todos os discursos de maldição sobre o CO2. A Terra não é o paraíso. Mas não é um monte de lixo.

António Rego


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