O Divino nas ruas
O abismo do mal, que num segundo sorve as realizações de tantas vidas, é um desafio permanente para crentes e não crentes, que lhe procuram um sentido
A situação que se vive no Haiti é uma questão incontornável nas últimas duas semanas e tem gerado as mais diversas reacções, análises e abordagens. A dureza das imagens, eventualmente a ultrapassar o que seria aconselhável, nalgumas circunstâncias – tem servido vários interesses, até porque a guerra das audiências não conhece tréguas, mas tem também suscitado reacções de altruísmo e generosidade que são sempre de registar.
Nesta diversidade, ouvi com espanto a intervenção de um experimentado jornalista, que dava conta de um suposto afastamento das populações haitianas de práticas religiosas ou do recurso ao sobrenatural. A conclusão do repórter é que os homens e mulheres atingidos pelo sismo tinham descoberto, afinal, que não é do além que obtêm protecção.
Percebe-se que se pergunte por Deus numa hora de tragédia. O abismo do mal, que num segundo sorve as realizações de tantos e tantas vidas, é um desafio permanente para crentes e não crentes, que lhe procuram um sentido.
Basta lembrar o que aconteceu no terramoto de Lisboa, a 1 de Novembro de 1755. Lisboa era uma das capitais culturais do mundo e a sua destruição consternou intelectuais como Voltaire ou Kant. Nessa altura, a racionalidade humana assumiu os seus limites, marcando assim toda a reflexão filosófica subsequente.
O nosso tempo tem grandes pensadores e esperamos que o terramoto no Haiti desperte as suas reflexões. Até porque os nossos contemporâneos merecem mais do que uma reportagem a “constatar” que o divino já não mora ali.
Em boa verdade, é quase inevitável perguntar por Deus nestas circunstâncias, mas não é honesto esquecer, com essa pergunta, aquilo que é da responsabilidade de cada ser humano. O divino não se manifesta no furor dos cataclismos, mas nos pequenos gestos que alteram a vida de quem nos rodeia, nesta aldeia global em que ninguém é um estranho.
Não será fácil perceber o que se passa no coração dos haitianos. Lembro, contudo, que muitos dos que têm sido salvos dos escombros atribuem a sua sobrevivência a uma força divina que, de uma forma ou outra, sentiram presente ao seu lado, quando a esperança desaparecia. Seria tentado a confiar mais em quem saiu vivo deste verdadeiro inferno do que num qualquer repórter demasiado lesto a expulsar o divino da vida de quem ainda sofre, ama e espera num futuro melhor. Porque há coisas que não se podem contabilizar.
Octávio Carmo
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