19/01/10

Entre Ruínas

Neste oceano de ruínas perguntamos pela bondade de Deus, pela ordem do universo, pela inteligência harmoniosa das forças natureza

O Haiti entrou no grande teatro do mundo por motivos bem diferentes daqueles por que frequentemente era noticiado: as crises políticas e os golpes de Estado. À notícia do sismo sempre se juntou uma outra não menos dramática: a pobreza. Um dos países mais pobres do mundo, foi o subtítulo que sempre acompanhou as grandes manchetes sobre um sismo que teve apenas mais um ponto do que aquele que recentemente nos atingiu. Poderíamos ter sido nós.

Um acontecimento desta ordem, num grau de tragédia tão intenso, deixa-nos sempre um oceano de questões que vamos arrumando desajeitadamente até que o tempo nos canse, as imagens nos saturem e um outro evento nos mude os registos da emoção. Desta vez não foi excesso de chuvas, desabamentos, furações, possivelmente por maus-tratos que vamos dando à gestão do frio e do calor nos nossos mecanismos de civilização. Desta vez não sabemos bem o que há a fazer com placas tectónicas que se movem poucos quilómetros abaixo do mar e estoiram com o rés-do-chão do nosso planeta onde construímos as nossas casas e desenhamos as nossas cidades, desde o barracão rudimentar ao palácio presidencial.

Neste oceano de ruínas perguntamos pela bondade de Deus, pela ordem do universo, pela inteligência harmoniosa das forças natureza. E deixamos, primeiro, tudo cair num magoado silêncio. Paradoxalmente a todas as perguntas que a morte e o sofrimento nos lançam, juntamos sempre uma: "a quem iremos, Senhor?"E podemos percorrer o pranto que se espalha em muitos salmos, as desolações que são lamentadas pelos profetas, as dores e ruínas que foram acompanhando a humanidade que cronistas, pintores, poetas e místicos plangeram. A Jerusalém destruída, o povo no exílio, o pranto e as lágrimas. E a cruz, com a sua dramática contradição, apenas iluminada no mistério de Deus. Quem mais nos poderá aquietar o coração?

Aqui se abre outro capítulo: foram destruídas muitas casas que nunca mereceram esse nome. Testemunhamos violência e desespero em momentos extremos. Assistimos a gestos de ternura e humanidade mais notórios nestes momentos. Chegaram olhares de solidariedade do mundo inteiro que foi assinando a evolução da tragédia a par de gestos sublimes que ela suscitou de abnegação e heroísmo. Atrasadas para a urgência, foram e vão chegando sinais de ajuda, fraternidade, renúncias dum mundo que tantas vezes parece leviano mas que tem momentos - quantas vezes na sequência de tragédias - em que traz ao de cima a humanidade que o habita.

O Haiti vai ressurgir das cinzas. A intensidade do sofrimento é excessiva para justificar a reconstrução dum país. Mas é mais uma paradoxal lição para a humanidade. A fé, em vez de obstáculo para todo este cenário, oferece a chave de redenção que insere nas contas e no tempo de Deus o que queremos encaixar apenas nos nossos cálculos imediatos. E na acção concreta dos homens. Com as energias de ressurreição que estão no íntimo de todos nós.

E um apelo, para que o Haiti e todos os Haitis do mundo sejam conhecidos e amados por outras razões que não a tragédia.

António Rego



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