27/12/10

Excel 2011

Em 2011, amanhã, já... é necessário uma ruptura: que ofereça o protagonismo à pessoa na construção da história; e o primado a Deus no seu desígnio.

Mesmo com o ano novo ainda longe, muitas vozes se foram juntando na rejeição ao que aí vem. Os votos de felicidade alteravam-se por resistências à novidade, normalmente referência de esperança.

Em 2011, temem-se cargas fiscais, cortes salariais, perda de emprego, incapacidade de cobrança, dívidas, tumultos sociais, manifestações. E com razões de sobra para reais preocupações pessoais e familiares.

Após cada negócio, programa ou projecto, orçamento de Estado ou de muitas famílias, os resultados pretendidos parecem mais distantes e a contabilidade descobre crescentes fragilidades.

Nessas circunstâncias, ganham relevo sentenças já afirmadas e só agora ouvidas, que apontam para a necessidade de mudar de hábitos, comportamentos e atitudes. Em causa estão formulações simples mas profundas. E por isso tardam em encontrar tempo e espaço de realização: é necessário aprender a viver com menos e a repartir os recursos disponíveis por todas as pessoas.

Os dias do consumo deram espaço crescente às "folhas de cálculo". Até não há muito tempo, o dinheiro disponível via-se, era palpável: algum gastava-se, outro juntava-se para projectos que, por vezes, só se cumpriam em idades adiantadas. Hoje, entregam-se esses cálculos à informática, que fornece fórmulas e equações para todas as necessidades. Não só sobre o dinheiro que existe, como também sobre o que não existe. E todo se pode gastar.

Por outro lado, as empresas fazem depender a direcção de negócios dessas fórmulas virtuais, devidamente programadas por "alguém". Não existe o rosto, o percurso pessoal e profissional, as competências ou fragilidades. Apenas fórmulas, onde cada pessoa se inclui porque é um número ao serviço de outro número: o lucro.

Continuando esta lógica, não haverá, de facto, razões para a esperança.

Em 2011, amanhã, já... é necessário uma ruptura: que ofereça o protagonismo à pessoa na construção da história; e o primado a Deus no seu desígnio. E se fundamente no valor da relação como o princípio de uma nova ordem pessoal e mundial: a relação sincera com a própria pessoa, com os outros e com O transcendente.

E a folha de cálculo será de igual forma necessária. Mas, no sistema operativo para o próximo ano, o Excel 2011 surgiria com novas fórmulas e novos "filtros": percentagens para descontos e cobranças que respondam imediatamente à contingência; e limites para as trocas comerciais e operações financeiras que coloquem em causa a construção do bem comum.

Paulo Rocha


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14/12/10

O presépio somos nós

Um poema de José Tolentino Mendonça

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro destes gestos que em igual medida
a esperança e a sombra revestem
Dentro das nossas palavras e do seu tráfego sonâmbulo
Dentro do riso e da hesitação
Dentro do dom e da demora
Dentro do redemoinho e da prece
Dentro daquilo que não soubemos ou ainda não tentamos

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro de cada idade e estação
Dentro de cada encontro e de cada perda
Dentro do que cresce e do que se derruba
Dentro da pedra e do voo
Dentro do que em nós atravessa a água ou atravessa o fogo
Dentro da viagem e do caminho que sem saída parece

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro da alegria e da nudez do tempo
Dentro do calor da casa e do relento imprevisto
Dentro do declive e da planura
Dentro da lâmpada e do grito
Dentro da sede e da fonte
Dentro do agora e dentro do eterno

José Tolentino Mendonça


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07/12/10

Que missão para os bens culturais hoje?

Não são de hoje algumas dúvidas, no que aos bens culturais da Igreja diz respeito. Que prioridade lhes atribuir em contexto eclesial? Estarão as instituições da Igreja preparadas para usar o seu património em benefício de uma pastoral alargada? Que entendimento têm dos seus bens culturais? Que função pastoral exercem hoje? De que modo são partilhados com a sociedade em geral?

Área sujeita a interpretações voláteis, é com espanto que constato um frequente entendimento dos bens culturais da Igreja como matéria de luxo, área dispendiosa, insuficientemente explorada em contexto pastoral. Não se afigura uniforme o entendimento do seu papel entre as instituições eclesiais, o reconhecimento indubitável da sua missão. Aqui se trava uma batalha actual, esmiuçando e defendendo a sua indispensabilidade, como área estruturante, mas, mais do que isso, actuante. Efectivamente, actuante.

Mesmo escamoteando o essencial - a sua importância pastoral, a sua singularidade cultural, a sua preponderância patrimonial, a sua relação umbilical com a História, com o país, com a tradição ocidental, enfim, a sua excepcionalidade nos mais diversos domínios - ainda assim, bastaria reduzir os bens culturais da Igreja à sua estrita materialidade, para, em si mesmos, lhes encontrarmos motivações bastantes para um desempenho prioritário, para uma actuação urgente.

Falamos de um património concreto, matéria que sobrevive, vivendo em risco neste conceito equívoco de missão incompreendida, carente de uma actuação concertada, demasiadas vezes legada ao abandono e à incúria. Falamos, não apenas da óbvia necessidade de preservar uma herança única, mas também do imperativo de a devolver às comunidades, bem entendido, em situação de ser apreciada, estimada, compreendida e fruída. É urgente recolocar os bens culturais ao serviço da Igreja. É essencial a consciencialização de que devem cumprir a sua missão. É fundamental que a Igreja reaprenda a utilizar este seu património em benefício próprio. Desde logo, permitindo-lhe o cumprimento da sua tarefa pastoral, mas também numa vertente cultural e, num horizonte de sustentabilidade, até mesmo turística.

Não valorizar o património, não dar prioridade às suas necessidades, não aplicar nos procedimentos quotidianos um mínimo de práticas preventivas, em suma, silenciar os bens culturais da Igreja é retirar-lhes a hipótese de concretizarem qualquer dos seus possíveis desígnios. O cuidado que reclamam, já o disse noutro local, pretende, prioritariamente, devolver-lhes o sentido.

O tempo é de crise, não de luxos, com efeito. Mas é também por isso mesmo um momento único, certeiro e oportuno, de passar à prática acções concretas e sistematizadas. A cultura pode constituir-se, estrategicamente, como um factor essencial de desenvolvimento. É fundamental ultrapassar esta aparente inoperacionalidade. Mesmo em tempo de crise, com inteligência e perseverança muito se pode fazer. Há que potenciar recursos, reconhecer limites, delegar competências e assumir parcerias, sem constrangimentos, nem preconceitos.

Sandra Costa Saldanha


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