29/02/12

Homens do diálogo

A Agência Ecclesia nasce do trabalho que D. Manuel Falcão inaugurou no início da década de sessenta

“O trabalho começa hoje e não acaba nunca”. A afirmação é do Papa Paulo VI e compõe o penúltimo parágrafo da primeira encíclica do seu pontificado. Paulo VI falava do diálogo – teria de ser – e da prática que encontra tanto no “interior da Igreja” como com os de fora. Isso é sinal de que “a Igreja está hoje mais do que nunca viva”. “Mas – continua de imediato -, reparando bem, parece que tudo está ainda por fazer”.

Na Ecclesiam Suam, Paulo VI escreve 65 vezes a palavra diálogo. O documento é programático e de um pontificado que dava continuidade aos trabalhos do Concílio Vaticano II e teria de os fazer chegar à universalidade da Igreja. O Papa Montini reserva metade do texto, a segunda, para falar de diálogo. Antes, de outras duas atitudes que propõe para a Igreja Católica: consciência, renovação.

Na década de sessenta, e nos dias de hoje, o diálogo “com tudo o que é humano” é o horizonte. Paulo VI assume “de bom grado” essa “primeira universalidade”: “a vida, com todos os seus dons e problemas”. Depois, na definição de “círculos concêntricos” onde a Igreja Católica é chamada a estar em diálogo, refere os “crentes em Deus”; num terceiro círculo, o “mundo que se intitula cristão”. O Papa fala depois no diálogo dentro da Igreja, um “diálogo doméstico”, que deseja “familiar e intenso”.

O programa não é de há 50 anos. É dos dias de hoje. A comprová-lo, acontecimentos e sobretudo histórias de vida.

Entre os acontecimentos, dois exemplos: a participação ativa e criativa de pessoas e instituições da Igreja Católica em iniciativas como Braga Capital Europeia da Juventude ou Guimarães Capital Europeia da Cultura.

Entre as vidas, sobressai a notoriedade de algumas. Sobretudo quando correspondem não a comportamentos ocasionais, antes a uma atitude permanente. É o caso de D. Manuel Franco Falcão.

Despedirmo-nos deste homem exige sobretudo dizer-lhe obrigado! Ao longo dos seus 89 anos, na universidade, no sacerdócio, no ministério episcopal viveu a urgência do diálogo. E dialogou; lançou-se ao encontro do outro, nos mesmos círculos concêntricos propostos pelo Papa Paulo VI.

Na História da Igreja em Portugal, D. Manuel Franco Falcão deixa capítulos inovadores sobre sociologia da religião, sobre diálogo da e na Igreja, sobre preservação e fruição do património. Deixa também largos passos dados na valorização dos meios de comunicação social. Concretamente, a Agência Ecclesia nasce do trabalho que D. Manuel Falcão inaugurou no início da década de sessenta. Por isso e por tudo, obrigado! Sobretudo por sempre ter valorizado essa fronteira do diálogo, onde a Igreja é chamada a estar cada vez com mais intensidade, o mundo dos media.

Paulo Rocha


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23/02/12

A Cadeira de São Pedro

Símbolo de uma Igreja congregada e apelo à unidade de todos os cristãos, remonta a 370 a inscrição atribuída a São Dâmaso, referente à existência de uma cadeira portátil considerada a cátedra do Apóstolo


“Símbolo de uma Igreja congregada e apelo à unidade de todos os cristãos (…) retoma um dos símbolos mais antigos do ministério episcopal”

A Igreja comemora amanhã, dia 22 de fevereiro, a festa da Cadeira de São Pedro. Já celebrada em Roma desde o século IV, símbolo de uma Igreja congregada e apelo à unidade de todos os cristãos, remonta a 370 a inscrição atribuída a São Dâmaso, referente à existência de uma cadeira portátil.

Considerada a cátedra do Apóstolo, dela restam hoje pequenas relíquias em madeira, conservadas na basílica de São Pedro, na célebre cátedra barroca, projetada por Gian Lorenzo Bernini.

Do grego kathedra, retoma um dos símbolos mais antigos do ministério episcopal, do magistério do bispo e da sua própria autoridade pastoral, designando o assento que lhe é reservado na diocese, a sua cadeira na igreja-mãe de todas as outras - a catedral.

Situada por norma ao fundo da abside, de modo a que o bispo possa ver e ser visto pela sua comunidade, tem-se perdido no tempo como símbolo central na emulação do cerimonial litúrgico.

Neste dia em que a Igreja celebra a cátedra do Apóstolo, vale a pena resgatar do esquecimento um raríssimo exemplar de cadeira episcopal gótica em Portugal.

A cátedra quatrocentista da igreja da Colegiada de Santo Estêvão (efémera catedral, quando Valença foi administração eclesiástica independente), “huma cadeira antiga para os Bispos que ali se achassem administrado esta terra de entre Lima & Minho”, que importa conhecer, estimar e valorizar.

Sandra Costa Saldanha


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14/02/12

A Quaresma vem ao nosso encontro

A Quaresma faz-nos passar do «deixa andar» e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa

Um dos mais espantosos apelos de Quaresma que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo, mas sim por um poeta. Escreveu-o T. S. Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero, sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjetivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”.

Nesse poema, dizem-se três coisas fundamentais. Se as soubermos ouvir, percebemos que elas correspondem a caminhos muito objetivos (a mapas pessoais e comunitários) de conversão. E não é esse o desafio da Quaresma, e desta Quaresma em particular?



1. A Quaresma vem ao nosso encontro para que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem dramaticamente com os do nosso rosto: damos por nós a viver uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado no essencial, e passássemos a olhar para as nossas asas (e para as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo, esmorecendo”.



2. A Quaresma vem ao nosso encontro para nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais à revigoração da fonte, o que do sono nos dá acesso à vigília iluminada da vida é aceitarmos o desafio de nos fazermos de novo à estrada, e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de restos, do que uma primavera do Espírito.



3. A Quaresma vem ao nosso encontro para que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida. Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A Quaresma faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus.

José Tolentino Mendonça


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08/02/12

O Espírito e a geografia curial

Creio, sobretudo, que o Espírito continua a ser capaz de entrar em todas as salas, estejam ou não abertas as portas, suscitando impertinências que nunca O deixam prisioneiro

Realiza-se, dentro de dias, o IV Consistório do papado de Bento XVI. Nele serão criados 22 novos cardeais.

Em Portugal olhamos para o acontecimento com um misto de alegria nacional e eclesial, pois entre os eleitos está o vimaranense D. Manuel Monteiro de Castro.

É normal este regozijo. É, aliás, compreensível que, especialmente em momentos de crise, todos os pretextos sejam bons para levantar o ego e fazer festa. Com uma ressalva, porém: que não se esqueçam, nas dobras do bairrismo, os méritos do eleito - uma vez que a sua escolha pressupõe uma vida pautada por sã doutrina, costumes, piedade e prudência. Nem se desvalorize, na alusão a trabalhos específicos, a grande responsabilidade de eleger um novo Papa; nem esse outro papel que Bento XVI fez questão de apontar no anúncio do Consistório: «os Cardeais têm a tarefa de ajudar o Sucessor de Pedro no cumprimento do seu Ministério de confirmar os irmãos na fé e de ser o princípio e fundamento da unidade e da comunhão da Igreja».

Dito isto, uma palavra para as neblinas em torno da reunião de 18 de fevereiro; sobretudo as que se erguem dos vales de quantos gostam, também na vida da Igreja, de análises geoestratégicas e estatísticas…

Concorde-se ou não, a verdade é que em torno da escolha dos novos cardeais abundam leituras e interpretações.

Realçam, uns, o peso dos italianos e dos funcionários da Cúria e, em contrapartida, uma menor «consideração» pelas Igrejas de África e América Latina, falando mesmo em «escassa universalidade». Outros, ou os mesmos, analisam o perfil dos eleitos, para concluírem que a presença de gestores ultrapassa a de teólogos.

Se se atender aos números, estes parecem dar razão a quem assim pensa. Entendo, porém, que é injusto considerar que o Papa está distraído ou menos interessado no contributo que pode receber de quem vive geograficamente mais longe ou se confronta com realidades diversas. Mas creio, sobretudo, que o Espírito continua a ser capaz de entrar em todas as salas, estejam ou não abertas as portas, suscitando impertinências que nunca O deixam prisioneiro.

Sem prescindir, por isso, do legítimo desejo de ver no Colégio de Cardeais mais Padres e Pastores de Igrejas particulares, faço minha a oração de Louis Fromy, leitor do “La Croix”: «que o Espírito inspire aos cardeais um sensus ecclesiae atual, realista e... missionário».

Isto vence qualquer «geografia curial».

Padre João Aguiar Campos


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02/02/12

Luz no sofrimento

Essa mesma dor, como muitas vezes aprendemos, pode ser, contudo, um sinal de que a vida ainda está em nós, que não se quer deixar eliminar, lutando contras as adversidades, chamando-nos para essa luta

O cardeal-patriarca de Lisboa falava, recentemente, num “paradoxo” na relação entre o catolicismo e a dor humana, afirmando que a Igreja, por um lado, procura mitigar esse sofrimento e, por outro, dá-lhe um sentido sublime e transcendente.

A aproximação do Dia Mundial do Doente recupera, anualmente, a reflexão e também a celebração sobre essa (apenas) aparente contradição: o crente não pode ignorar o sofrimento do outro, no qual reconhece o seu rosto e a face de Deus, ainda que tudo faça para o evitar. A história ensina-nos que a dor é uma marca constante do ser em humanidade. Não se pode fugir dela, mas também não é lícito permanecer impassível, como se não fosse possível ajudar quem sofre.

O que muitos podem ver como fuga à realidade, na referência ao transcendente, é, por parte da doutrina católica, a resposta mais sincera que pode oferecer sobre a existência: como captar a beleza do momento que passa sem ser com a alma aberta ao infinito, mesmo (sobretudo) nos momentos mais duros?

Já uma vez, neste espaço, escrevi sobre o que custa acreditar que o sofrimento tenha um qualquer objetivo purificador, que a vida tenha um propósito para lá deste ‘sem-sentido’ em que a natureza nos reduz a uma terrível insignificância, na sua arbitrariedade.

O sofrimento, a doença que atinge sem olhar a quem, amplificam esse sentimento, até porque, talvez por uma questão cultural, vemos a dor como um castigo, uma perda do estado original de perfeição. Essa mesma dor, como muitas vezes aprendemos, pode ser, contudo, um sinal de que a vida ainda está em nós, que não se quer deixar eliminar, lutando contra as adversidades, chamando-nos para essa luta - e não nos largando enquanto não a ouvirmos...

Muitos, perto ou longe de nós, vivem como se a dor não tivesse fim, como estivesse à espera de uma qualquer brecha para se fazer sentir. Acredito, como diz Leonard Cohen, que há mesmo uma fenda em tudo e que é assim que a luz entra. A fé católica e o seu ensinamento sobre o sofrimento podem ser, para muitos, essa mesma luz.

Octávio Carmo


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