26/01/12

Saberes e sabores

A atenção a fatores culturais, ao saber de todas as pessoas e à criatividade adormecida permite encontros regeneradores de tecidos de si muito frágeis

A expressão “encontro de saberes e sabores” foi oferecida a um auditório que procurava experiências de salutar convivência entre pessoas diferentes, na cultura, etnia ou religião. Não quis traduzir resultados de análises laboratoriais ou criações em ambientes de estufa, concebidos e produzidos de acordo com a medida final, o modelo pretendido.

Em causa estão contextos sociais frágeis, em frequente conflito, que encontram na vontade e na criatividade de poucas pessoas o segredo para o oásis de relações construtivas e pacificadoras.

Hoje, como outrora, multiplicam-se narrativas em torno de profundos saberes e bons sabores. Descobrem-se, por muitas esquinas, pessoas e acontecimentos que geram paixão salutar, criam ambientes de concórdia e oferecem energia a projetos transformadores.

Dias de oração pela unidade dos cristãos, por exemplo, antecipam a convivência entre seguidores do mesmo Mestre; são luz ao fundo de um túnel que passa por entre séculos de divisões e ultrapassa obstáculos de mão humana.

A reunião da criação artística em torno de projetos como Guimarães 2012 é outro momento favorável de receção de “coisas belas”, que possibilita a transformação urbana e o preenchimento da pessoa segundo critérios de beleza.

A referência sociocultural dessa possibilidade de encontro com saberes e sabores acontece, neste caso, em contexto improvável: um bairro a merecer constantes reservas e distâncias, Bela Vista, em Setúbal, e cidadãos desconhecidos, diferentes, alguns tirados das margens e quase todos envolvidos na condição migrante.

Se é certo que condicionalismos sociais e sobretudo económicos determinam as migrações, a atenção a fatores culturais, ao saber de todas as pessoas e à criatividade adormecida permite encontros regeneradores de tecidos de si muito frágeis.

Neste caso, as lideranças de um bairro, nomeadamente as religiosas, a atenção à história de cada pessoa, a ajuda e sobretudo o atendimento a muitas angústias têm sido ocasião de transformação de cenários de conflito em descobertas surpreendentes de saberes e sabores. Afinal, eles subsistem em todas as pessoas.

Paulo Rocha


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18/01/12

Igrejas a saque: um flagelo que nos compete travar

São centenas as ocorrências registadas que aguardam por informações esclarecedoras, que permitam a identificação mínima dos objetos desaparecidos

Os furtos em templos católicos constituem, de longa data, um dos mais preocupantes delitos cometidos contra o património cultural da Igreja. Ampliadas as chamadas de atenção, no sentido de serem reforçadas medidas preventivas e meios de defesa adequados, a verdade é que algumas rotinas elementares de segurança permanecem descuradas. A implementação de um simples registo cadastral, por exemplo, continua por fazer em inúmeras igrejas.

Face à dimensão do problema, muitas são as dioceses que optam por retirar dos seus templos os objetos mais valiosos. No entanto, fechar igrejas ou encarcerar as peças, contrariando a sua vocação original, não pode constituir, em circunstância alguma, uma solução de salvaguarda aceitável.

Foi nesse sentido que o Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja iniciou o recenseamento das obras de arte furtadas em igrejas, tendo em vista, não apenas um melhor conhecimento do problema, mas, sobretudo, promover a sua mais ampla divulgação. Consumado o furto, noticia-se por norma a apreensão, a detenção dos criminosos, mas não o roubo em si ou, mais importante, as peças desaparecidas.

Ferramenta online que nasce, assim, da necessidade de implementar medidas concretas no campo da preservação e salvaguarda deste património, não pretende traçar um retrato fiel do fenómeno, mas antes exercer um papel de sensibilização junto das comunidades e da sociedade em geral.

Urge agora atuar em conformidade e assegurar uma comunicação constante e eficaz, nomeadamente entre os diversos serviços diocesanos, paróquias, entidades policiais, e o próprio SNBCI. A tarefa torna-se particularmente complexa se não existir esse apoio mútuo e incondicional. São centenas as ocorrências registadas que aguardam por informações esclarecedoras, que permitam a identificação mínima dos objetos desaparecidos. Os meios de comunicação não faltam, compete-nos agora saber comunicar.

Sandra Costa Saldanha


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11/01/12

De que falamos quando falamos de crise?

A crise é também uma chance, uma oportunidade, um momento favorável para a construção, para o conhecimento e a reconfiguração do nosso mundo.

Mais do que uma palavra, “crise” é uma árvore de significados urgentes e incessantes. O modo como hoje empregamos a palavra “crise” vem muito pela via da medicina. Para Hipócrates e depois para Galiano, no século segundo, o momento de crise é aquele momento em que a doença se decide: ou nos precipita na morte ou nos encaminha para a recuperação. A crise é assim o ponto de passagem, o nó de viragem, o instante da transformação.

Há uma definição que aparece no léxico universal de Ziegler, em 1737, onde este autor escreve: «O homem que não passa por nenhuma crise não está capaz de julgar coisa nenhuma». É interessante que, tendo começado fundamentalmente no campo da medicina, para falar daquilo que acontece no corpo individual, este conceito da crise se tenha alastrado à própria sociedade, entendida ela como um organismo vivo. A sociedade também é um corpo. Como comunidade, seja ela civil, cultural, eclesial, somos um corpo, somos um organismo vivo, somos interdependentes, não nos podemos descartar uns dos outros, nem nos descartarmos a nós próprios. Nesse sentido, a crise é uma espécie de marca da compreensão do sujeito, uma assinatura humana, um observatório daquilo que somos. Antes de tudo, é o crescimento humano que supõe necessárias ruturas e separações, logo crises. A primeira e mais radical crise que cada pessoa vive é o seu próprio nascimento.

Momento mais do que nunca vital, mas também mais do que nunca crítico, doloroso… E depois se pensarmos que o nascimento implica uma verdadeira e radical reconfiguração, pois o neonato impõe a reestruturação dos equilíbrios no interior da família. Chega mais um e tudo se altera, desde o espaço físico, às relações, às rotinas, aos horários, às agendas.

Também por isso não faz sentido alimentarmos uma visão puramente negativa da crise. Acolhamos a crise como um lugar de aprendizagem, como uma espécie de espelho, austero, mas um espelho, onde nos podemos reencontrar, para lá das nossas ilusões e das nossas subjetividades. A crise é também uma chance, uma oportunidade, um momento favorável para a construção, para o conhecimento e a reconfiguração do nosso mundo. Exterior e interior.

José Tolentino Mendonça


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04/01/12

Além das receitas

Todos podemos aprender a ouvir mais atentamente a terceira idade, envolvendo-a nas paróquias


A UE pretende desenvolver, até 2014, uma série de iniciativas/respostas ao crescente envelhecimento da sua população. A mais saliente de entre elas será a celebração do Ano Europeu do Envelhecimento Ativo, que agora começa.

Os números justificam-no claramente: “em 2060 haverá apenas uma pessoa em idade ativa (15-64) por cada pessoa com mais de 65 anos”. É, pois, evidente o desafio que daqui emerge; mas também a oportunidade de pensamento e mudança que tal comporta. Sobretudo, se tal fizer aprofundar políticas sociais e alterar preconceitos...

Um deles é a ideia, muito assimilada, de que a vida (quase) termina no dia em que se passa à reforma. A pessoa em causa facilmente sente que perdeu status numa sociedade que considera que deixar de trabalhar é deixar de produzir e aumentar o número dos descartáveis.

Contrariar esta mentalidade e aprender a tirar partido da vida em tais circunstâncias é uma tarefa de cada um; mas há, igualmente, que fazer ver à opinião pública o potencial dos mais idosos para o serviço à sociedade e à economia: não os afastando do mercado do trabalho e incrementando a sua participação na vida da comunidade. Concretamente, proporcionando contextos para a transmissão dos respetivos conhecimentos, que enriquecem outras gerações e salvaguardam a própria autoestima. Ao mesmo tempo, os mais idosos também se enriquecem, pois que nenhuma geração tem o monopólio do saber: cada um tem conhecimentos de que outros carecem!

Este é um caminho a percorrer, contra o individualismo que ameaça dominar-nos e nos fecha dentro de fronteiras que os outros rotulam: de um lado, os “cotas”; do outro, os “inconscientes”. Uns e outros, porém, fechando aos demais as condições do seu (des)envolvimento pessoal e social.

Entendo que neste ano e neste diálogo indispensável a Igreja tem muito a aportar. A começar pela prática - mostrando que, no seu seio, não há lugar para a discriminação. Pelo contrário, assumindo-se como lugar onde cada ser humano vale e é reconhecido pelo que é e não pelo que faz ou produz.

Todos podemos aprender a ouvir mais atentamente a terceira idade, envolvendo-a nas paróquias, mediante o acolhimento dos seus dons. E o voluntariado não é o menor dos espaços de participação, sendo que a imaginação e a sensibilidade pastoral saberão encontrar outros ministérios.

Comecemos por deixar intervir, contrariando a tentação de manter ou desejar idosos passivos ou como meros e mais frequentes fregueses da Missa e outros sacramentos...

A este propósito encontrei citado, acho que apropriadamente, o Salmo 92 “Os que estão plantados na casa do Senhor florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice ainda darão frutos; serão viçosos e vigorosos para anunciar que o Senhor é reto”.

Amá-los e respeitá-los é muitíssimo mais que ter saudades dos contos do avô ou das receitas da avozinha!

João Aguiar Campos


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