27/04/11

O triunfo da memória

Apresentar João Paulo II como modelo de fé e de espiritualidade é um apelo ao essencial, ao mais íntimo, ao que moveu poderosamente esta figura da Igreja Católica num tempo difícil

A noite de 2 de abril de 2005, na qual João Paulo II morreu, aos 84 anos de idade, foi, pessoalmente, muito longa, cheia de trabalho, de cansaço, de sentimentos que se misturavam.

Depois de vários dias a seguir o progressivo agravamento do estado de saúde do Papa polaco, o desfecho era anunciado e mais do que previsível, mas só às 21h37 de Roma é que tantos e tantos se confrontaram com o final de um percurso de vida notável.

O Papa caminhou serenamente para a hora do adeus e o mundo acompanhou-o com a sua solidariedade e oração, numa prova suprema da universalidade desta figura incontornável.

Nenhuma cara seria tão familiar, no conjunto dos cinco continentes, como a de este homem de branco que recebeu milhões de pessoas no Vaticano – seja em celebrações litúrgicas, seja em audiências públicas e privadas -, e foi ao encontro delas, nos seus países, nas suas 129 viagens fora da Itália.

Milhares de milhões habituaram-se, por outro lado, à sua presença nos meios de comunicação social e foi através dos media que acompanharam o desenrolar do estado de saúde do Papa. Mais do que nunca, João Paulo II pareceu ser um familiar de homens e mulheres de todo o mundo, que assistiram ao agravamento das suas condições e ao anúncio do seu falecimento.

Ao muito material biográfico que estava preparado, no meio da azáfama de reações e comunicados que chegavam, acrescentei uma última linha, pouco profissional, por certo: “Hoje, 2 de abril, o último gigante do nosso tempo morreu no Vaticano”. Espero que os leitores não a tenham levado a mal.

Seis anos depois, a beatificação de Karol Wojtyla é um momento de memórias, muitas, lembrando as manifestações de tristeza e homenagem que, posteriormente, se foram transformando numa festa serena.

Apresentar João Paulo II como modelo de fé e de espiritualidade não é, obviamente, um atestado de perfeição à sua vida, mas é um apelo ao essencial, ao mais íntimo, ao que moveu poderosamente esta figura da Igreja Católica num tempo difícil da história da humanidade, apesar das suas limitações e dos seus erros. E é um momento especial para aqueles que o conservam na memória, como se nunca fosse partir.

Octávio Carmo


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20/04/11

Infindável manancial de beleza

À Igreja compete potenciar uma fruição legível do seu património, apelar à participação na sua mensagem, numa sábia articulação entre as partes: o culto, a cultura, a celebração da fé e a arte

“Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna. Os homens de hoje e de amanhã têm necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho.”

(Carta do Papa João Paulo II aos Artistas, 1999)

Despercebido aos olhos de muitos, decorreu há dias, em Portalegre, um importante congresso sobre turismo cultural. Em magno auditório, repleto pelos 500 participantes que ali marcaram presença, tudo o mais se esquecia: a crise que assola o país, o FMI que chegara, o pessimismo geral que nos mina as atitudes. Potenciar sinergias, apostar na diferenciação, relevar Portugal, foram palavras de ordem. Sem demora, a questão “Igreja” redundava em temática central! Não seria de estranhar. Com efeito, a Igreja Católica detém a mais elevada parcela do património histórico-artístico nacional.

Enquanto católico, peregrino ou fiel, na pele de um mero visitante ou profissional da cultura, muitos foram já os que, todavia, experienciaram a frustração de não conseguir entrar numa igreja. O respeito pela sua natureza não se compadece, ainda que a pretexto da segurança, com a inacessibilidade que caracteriza uma boa parte deste património, que o desvirtua, que o priva assim da sua missão. Não existe para permanecer fechado. Não vive nem comunica encerrado.

Os templos não são efetivamente museus, tal como os seus bens ultrapassam a dimensão simplista da peça musealizada. Alfaias ao serviço da liturgia, é bem possível acentuar-lhes o sentido, proporcionar-lhes nova vida, numa valorização ativa e genuína.

Sem desvirtuar o essencial, à Igreja compete potenciar uma fruição legível do seu património, apelar à participação na sua mensagem, numa sábia articulação entre as partes: o culto, a cultura, a celebração da fé e a arte. Enfim, oferecer um meio de acesso, de crentes e não crentes, à sublimidade das formas, comunicantes de uma experimentação única, de oração e de vida. Num tempo em que nos falha a firmeza, em que se arrisca o entusiasmo, vale a pena evocar a atualidade das palavras de João Paulo II aos artistas, consentindo um novo olhar sobre este infindável manancial de beleza.

Sandra Costa Saldanha




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13/04/11

A Dívida Soberana - Sete mandamentos para atravessarmos a crise

O pão multiplica-se quando aceita ser repartido. A gramática da Vida é a condivisão

1º - A primeira de todas as dívidas soberanas, e certamente a mais fundamental, é aquela que cada um de nós mantém para com a Vida. Essa dívida nunca a pagaremos, nem ela pretende ser cobrada. Reconhecer isso em todos os momentos, sobretudo naqueles mais exigentes e confusos, é o primeiro dos mandamentos.

2º - Se a maior de todas as dívidas soberanas é para com um dom sem preço como a vida, cada pessoa nasce (e cresce, e ama, luta, sonha e morre) hipotecada ao infinito e criativo da gratidão. A dívida soberana que a vida é jamais se transforma em ameaça. Ela é, sim, ponto de partida para a descoberta de que viemos do dom e só seremos felizes caminhando para ele. É o segundo mandamento.

3º - O terceiro mandamento lembra-nos aquilo que cada um sabe já, no fundo da sua alma. Isto de que não somos apenas o recetáculo estático da Vida, mas cúmplices, veículos e protagonistas da sua transmissão.

4º - O quarto mandamento compromete-nos na construção. Aquilo que une a diversidade das profissões e as amplas modalidades do viver só pode ser o seguinte: sentimo-nos honrados por poder servir a Vida. Que cada um a sirva, então, investindo aí toda a lealdade, toda a capacidade de entrega, toda a energia da sua criatividade.

5º - A imagem mais poderosa da Vida é uma roda fraterna, e é nela que todos estamos, dadas as nossas mãos. A inclusão representa, por isso, não apenas um valor, mas a condição necessária. O quinto mandamento desafia-nos à consciência e à prática permanente da inclusão.

6º - As mãos parecem quase florescer quando se abrem. Os braços como que se alongam quando partem para um abraço. O pão multiplica-se quando aceita ser repartido. A gramática da Vida é a condivisão. Esse é o mandamento sexto.

7º - O sétimo mandamento resume todos os outros, pois lembra-nos o dever (ou melhor, o poder) da esperança. A esperança reanima e revitaliza. A esperança vence o descrédito que se abate sobre o Homem. A esperança insufla de Espírito o presente da história. Só a esperança, e uma Esperança Maior, faz justiça à Vida.

José Tolentino Mendonça


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07/04/11

Mais que retângulo político ou feira da ladra

Pertencer à União é mais que pagar na mesma moeda, apesar de sabermos que em negócios, ninguém dá nada a ninguém - amigos, amigos, negócios à parte. Mas a pergunta é esta: que somos para a Europa? Que é a Europa para nós?

O mundo de hoje não é um mapa cor-de-rosa. Anda sacudido por violentas convulsões políticas no norte de África e médio oriente, restos de sismos, chuvas descontroladas, tornados avassaladores em vários pontos do globo. E esse recente abalo três vezes trágico acontecido no Japão que nos acentua a fragilidade e impotência perante as forças descontroladas da natureza em terra e mar. Mas nos lembra alguns erros crassos dos nossos cálculos de resistência face às forças lógicas e cegas de falhas tectónicas, aluimentos de terras, ondas alterosas que parecem fazer voltar contra nós todas as suas fúrias. A isso se associa a maior força que criámos até hoje – a atómica – que contra nós se voltou quando se lhe pedia um serviço pacífico de energia para os nossos gastos úteis e inúteis. Afinal repetiu-se Hiroshima.

Para os nossos lados vamos esmorecendo em crises, multiplicando debates, análises, anatomias, discursos e comícios, sentindo cada dia subir mais a onda dos juros, impostos, falências e desemprego que nos tornam mais pobres, dependentes e possivelmente mesquinhos, resguardando mais os nossos cofres pequenos e grandes com medo de que a miséria dos outros os assalte. Apesar de continuarem as réplicas políticas sobre as culpas deste ou daquele, começa a compreender-se que isso é irrisório face à dimensão dos problemas que vivemos. Alargando o olhar para o grémio mais espaçoso a que pertencemos – a Europa – invade-nos a dúvida. Pertencer à União é mais que pagar na mesma moeda, apesar de sabermos que em negócios, ninguém dá nada a ninguém – amigos, amigos, negócios à parte. Mas a pergunta é esta: que somos para a Europa? Que é a Europa para nós?

E aqui entramos noutra história: o que nos fez entrar na Comunidade Europeia? Por quê e para quê fomos convidados? Que significado têm os discursos e análises de história comum e elementos culturais, políticos e patrimoniais que nos podem agregar num mesmo barco sem perdermos a nossa identidade?

São questões que nos envolvem e onde pode estar alguma saída para o presente impasse. Mas não separadas de outra: a nossa nacionalidade como identidade primeira de povo. Que a todos nos envolve, responsabiliza e lança para mais um desafio que não é o primeiro nem será o último da nossa história. Assim entendido, o país exige justamente outro olhar, aberto, solidário, comprometido. Onde o todo é mais que a soma das partes, o país é mais que uma pessoa, um chefe, um partido. O facto de termos matriz e vida cristã em muitos pontos da nossa terra e do planeta acentua o empenhamento onde a solidariedade se torna urgente e eficaz. Isso só é possível se definirmos Portugal como um povo e não como um retângulo político ou feira de compra e venda.

António Rego



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