28/09/10

O poder da memória

Mais do que recordar, percebemos em várias situações um esforço de reconstrução da memória, uma das forças mais poderosas da humanidade

Pontualmente, surgem no nosso quotidiano momentos de celebração das mais diversas datas, seja no plano pessoal, seja numa dimensão comunitária, institucional, se quisermos, em que tudo à nossa volta se orienta para determinado dia.

O centenário da República, a 5 de Outubro deste ano, não poderia deixar de ser um desses momentos, em que todas as atenções se concentram para um dos momentos fundamentais da nossa história recente, uma data que figurará sempre nos manuais de história portuguesa, o dia em que um novo regime nasceu.

Conscientes da importância da comemoração, várias foram as pessoas e organizações que promoveram uma revisitação a factos, pessoas, acontecimentos, a tudo o que ajudou a formar aquele momento em que uma nova República surgiu no mundo.

Mais do que recordar, percebemos em várias situações um esforço de reconstrução da memória, uma das forças mais poderosas da humanidade.

A verdade é que os testemunhos directos sobre aquele dia 5 de Outubro já não existem, tudo aquilo que se puder pensar, ler ou escrever depende de testemunhos de outros e vários ângulos de abordagem começam a ser válidos, à medida que vai desaparecendo a carga emocional e mesmo afectiva que rodeia estes acontecimentos.

A passagem do tempo permite, por isso, que alguma neblina se vá dissipando e que todos vão percebendo, em larga medida, que não há uma única maneira de escrever a história e que, mais do que respostas, os portugueses de hoje devem procurar as perguntas certas para colocar ao seu passado.

Foi disto que se falou em boa parte das últimas Jornadas Nacionais das Comunicações Sociais que decorreram em Fátima. A Igreja Católica convidou personalidades de vários quadrantes, ouviu, falou e procura perceber da melhor forma possível as «verdades e mentiras» que ao longo destes cem anos se foram perpetuando, criando preconceitos, estruturando quadros mentais, simplificando excessivamente uma realidade bem mais complexa.

Neste contexto, surge também uma edição especial que chegará às mãos dos assinantes deste semanário, e não só, para que seja possível, com vários contributos, perceber que o que está em causa, quando se “faz história”, é verdadeiramente o poder da memória.

Octávio Carmo


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21/09/10

Bento XVI - uma viagem quase impossível

O discurso global de Bento XVI deu ao mundo uma imagem diferente da Igreja Católica e da figura que para muitos é tida como de divisão mas que na realidade é referência religiosa e humana no nosso mundo: o Papa


Cinco meses depois de vir a Portugal, Bento XVI empreende uma viagem completamente diferente ao Reino Unido. Foi Chefe de Estado, Sucessor de Pedro, Pastor, ecuménico, penitente, corajoso, cordial, amigo. Tal como aconteceu em Portugal a Comunicação Social não foi benigna antes do acontecimento. Profetizou um fracasso, um pretexto para protestos e até uma oportunidade para o Papa receber ordem de prisão. O balanço final nada teve a ver com os agoiros.

A Inglaterra é indiscutivelmente uma referência no nosso tempo, de história, cultura, liberdade e comunicação. Mas raramente se diz que no Império de Sua Majestade ser católico é ter um estatuto menor, como que infiel a um país que há quinhentos anos escolheu o seu "Papa" e lhe presta fidelidade, onde o político e o religioso se misturam com ar benigno e natural. Noutro país seria considerado subdesenvolvimento ou terceiro-mundismo.

Há as feridas da história e não poucas, há recentes passos de aproximação entre a Igreja Católica e Anglicana, que voltaram atrás com as conhecidas decisões "fracturantes" da Igreja Anglicana. Foi este terreno minado que Bento XVI pisou, com a agravante dos escândalos inqualificáveis na Igreja Católica em muitos pontos do mundo e com uma incidência gravíssima nos Estados Unidos da América, Irlanda e Bélgica. Juízes implacáveis, de dedo em riste, esperavam Bento XVI.

O programa tinha alguns laivos aparentes de provocação: o Papa propôs - se beatificar um "adversário" do Anglicanismo - Newman -, saudou os que recentemente se converteram ao catolicismo pelas roturas com a Igreja nacional. Foi cordialmente recebido pelas autoridades civis e religiosas e com um entusiasmo e vivência profunda pelos católicos que, sendo minoria, se entregaram militantemente a esta causa que era muito mais que a visita deste Papa. Era um todo, momento único de dificuldade e diálogo entre duas Igrejas e dois Estados com todas estas feridas de permeio. A dignidade das celebrações, a participação viva da multidão, a ausência de qualquer triunfalismo, fizeram deste tempo um grande momento da Igreja neste início de milénio, com um Papa idoso, olhado ainda com preconceitos, mas com uma fé, uma firmeza e um porte humano de extrema delicadeza e respeito. E extrema lucidez e coragem. Na histórica celebração ecuménica de Westminster soube apontar o inimigo comum dos crentes: o secularismo. Apesar das fixações de alguns media, desde a BBC à TV Al Jazeera e canais portugueses - como se nada mais houvesse que a referência à pedofilia - o discurso global de Bento XVI deu ao mundo uma imagem diferente da Igreja Católica e da figura que para muitos é tida como de divisão mas que na realidade é referência religiosa e humana no nosso mundo: o Papa. Para além da figura concreta que desempenha essa missão.

António Rego





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14/09/10

O Turista e o Peregrino

Agora que Setembro nos trouxe de regresso às trajectórias do quotidiano, é bom pensar que o turista e o peregrino convivem dentro de nós.

O turista e o peregrino têm mais em comum do que possa parecer. Um pelo caminho do lazer, outro pela volta do sagrado: é, contudo, um impulso antropológico semelhante que os move. A experiência da saída de si, o desejo de outras paisagens, a busca de alteridade são traços reconhecíveis tanto num como noutro. O peregrino conserva alguma coisa do turista. O caminho de peregrinação, mesmo quando assume um carácter penitencial, não perde um tom festivo, uma quase ligeireza, que não é distracção, mas celebração. Tal como o turista conserva coisas do peregrino. Qualquer viagem pressupõe, por exemplo, uma reflexividade, uma experimentação sobre si mesmo, um saber de si. Mesmo se o que vemos são linhas, digressões por cidades ou trilhos, mesmo se nos parece estar apenas perante a representação objectiva da paisagem diurna ou do deslumbramento nocturno: por detrás de cada fragmento solto do mundo encontra-se uma pergunta maior.

A palavra turismo, de coloração anglo-saxónica, traduz a viagem motivada pelo prazer de mergulhar no aberto do mundo. Aparentemente não há nela uma necessidade ou um qualquer retorno utilitário. Nem há sequer, na maior parte dos casos, uma intencionalidade muito definida ou maturada. Num verso de Baudelaire, que é uma espécie de dístico, diz-se que «o verdadeiro viajante/é aquele que parte por partir». O turista é mobilizado pelo desejo de olhar, de conquistar, de perder («perder países», como Fernando Pessoa explica), fazendo da curiosidade uma marca de cultura e existência.

Mas a peregrinação também é isso, uma forma de viagem. Na prova real da deambulação pelo espaço, o peregrino busca, também ele, uma visão, com uma diferença qualitativa: a natureza dessa visão é interior. Não se trata simplesmente de ver mundo, mas de ver dentro e para lá do mundo, tacteando um sentido, uma luz, um encontro, uma revelação.

Agora que Setembro nos trouxe de regresso às trajectórias do quotidiano, é bom pensar que o turista e o peregrino convivem dentro de nós.

José Tolentino Mendonça


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07/09/10

Recomeçar, todos

Apesar de tudo, cada pessoa recomeça! Tudo vai andando, no rebanho ou no restolho, com mais ou menos estratégias diante do futuro. Há, no entanto, acontecimentos que travam esse devir.

Um ponto prévio para valorizar o que habitualmente é motivo de lástima: o fim das férias.

Direito mais do que justo para qualquer trabalhador, ter férias é, cada vez mais, um privilégio. Felizmente para muitos, pelo menos na sociedade portuguesa e nas que se regem por critérios de democracia.

Mesmo nesses, no entanto, cresce o número dos que não podem ter férias, porque não têm um emprego. Um aparente paradoxo que desafia, por um lado, à procura do equilíbrio social; e, por outro, à necessária valorização do tempo de férias, dos dias de descanso, de encontro com familiares, amigos e conhecidos.

Neste ano, o recomeço acontece entre muitas instabilidades. Elas atingem diversificados contextos sociais: nos tribunais, na política, no desporto, na economia.

Muitos processos arrastam-se no tempo e parecem uma bola de neve rumo a um abismo colectivo: os judiciários sem fim à vista, os políticos revestidos de demagogias e mesmo mentiras, os que dependem de resultados positivos ou negativos conquistados nos relvados e aqueles que vão sendo ditados por estatísticas de crise nos mundos da economia.

Apesar de tudo, cada pessoa recomeça! Tudo vai andando, no rebanho ou no restolho, com mais ou menos estratégias diante do futuro.

Há, no entanto, acontecimentos que travam esse devir. Que surpreendem qualquer rotina. Que levantam questões sobre tudo e sobre todos.

Neste Verão, o falecimento de um Bispo, inesperadamente, gerou esses sentimentos para um largo grupo de pessoas. Porque em causa estava uma pessoa próxima, simples, dedicada, amiga. Também porque o falecimento de D. Tomaz da Silva Nunes constituiu um inesperado choque.

Da sua vida evidencia-se essa entrega ilimitada à educação, ao trabalho de ensino, de ajuda na formação cultural e pessoal das novas gerações. Um trabalho nobre, tanto mais eficaz quanto discreto, silencioso, paciente, reservado, apaixonado.

Era também assim a vida de D. Tomaz! Uma vida completamente doada aos outros, na proximidade a educadores e a educandos, à família e à escola, a pais e professores. Sobretudo comprometida com uma comunidade crente, a Igreja Católica.

Recomeçar, todos, pode não ser já possível. Mas é necessário que, os que recomeçam, garantam a continuidade de todos os compromissos. Sobretudo os desenvolvidos no silêncio, com paixão e paciência. São esses os que transformam as sociedades, tornando-as mais justas e solidárias.

Paulo Rocha


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